sábado, 26 de outubro de 2024

crônica da semana - uma lesma no banheiro

 Uma lesma no banheiro (a promessa)

Vivo a experiência de não mais encontrar uma lesma no banheiro. Não brinco com essas coisas, mas acredito no poder de satisfazer precisões, tomar tento e desencadear fatos, buscar caminhos. Tenho minha planilha agora para antever futuro. Mas antes era no papel de pão ou em sonhos acordado aos embalos de uma rede no corredor da casa.

Era sempre no período chuvoso que elas apareciam. Escorregando devagarinho sobre aquela gosma brilhosa, aquele meio viscoso, de alta tensão superficial que as permitia rastejar como se voassem. Deixavam rastro lustroso. Marcas de presença nojentinhas. Eu me dou com corredor. Mas não com lesmas.

De forma que não é uma ilusão, uma fantasia quando me pego a reviver carreiras alegres pelo corredor de uma casa em terra firme. Uma alegria sem regras ao me abalar da sala à porta da cozinha e me largar aos prodígios do quintal.  Cajueiros espalhados e minados de frutos travosinhos, castanholas discretas, ameixas de roxear os beiços. Jacas das porrudas, abieiro... silêncio.

A moça do outro lado da cerca desejando caju com sal. Não sou de brincar com essas coisas, mas era sinal de menino. Tinha um neném naquela barriga. ‘Deu passo em falso, ninguém num me tira da cabeça’. Outra carreira pelo corredor. Ia dar na rua...

Atravessava com mais de mil sem olhar prum lado ou pro outro. Me aninhava ao pé da mangueira e mirava do outro lado da rua, minha casa. Pensava que sempre fosse morar daquele jeito. Casa com corredor e banheiro, lesmas no inverno. Cajueiros no quintal.

Deu foi do contra. Cuidei de me aviar na promessa com a Santinha.

Não sou de brincar com essas coisas. A pequena desejou e meses depois pariu uma menina loirinha. Na casa dela todo mundo comeu abiu. Silêncio. Sumiram.

Nos encontramos mais tarde, nos trançados da baixada. Quarto/sala/cozinha. Retrete partilhada com os vizinhos da vila e distante das casas. Tinha que caminhar por uma ponte mal arranjada para chegar até lá. E levar papel. Banho era na proteção do encerado e na cuia. Lesma. Mina de lesmas apareciam, aqui, acolá e não se acanhavam em varar fora da época das chuvas. O piso, as paredes do banheiro improvisado eram marcadas por aquele traçado viscoso.

A menina loirinha já estava crescida, folgava pelas pontes. Deu uma hora que na peraltice se desequilibrou e caiu no alagado. Da janela de casa vi a cena. Corri para acudir. Engoliu água da vala, teve infecção grave. Outra promessa.

Não havia quintal, nem prodígios, nem desejos. A vida era uma aventura de conquistas diárias. Os milagres acontecendo. A criança se recuperou, a família conseguiu um terreno no Coqueiro, com quintal. Não mais os vi.

A peleja pra cá pr’essas bandas continuava.

Não sou de brincar com essas coisas. Mas sentia saudade dos cajueiros, e dos sonhos acordado aos embalos da rede no corredor. As desabaladas de fora a fora no corredor eram uma maravilha, atar a rede lá pra dormir, nem tanto. Aos primeiros movimentos da manhã, era o primeiro a levantar, tirar a rede para abrir espaço às lidas do dia. Nessa leva, se aprontar, se entalcar e... escola. Mas... sem comparação com a baixada, onde era tudo mais emboloado. Sem corredor, era um por cima do outro. De manhãnzinha era um aperreio só para as precisões e tinha a legião de lesmas.

Penso nos outubros próximos e em todos eles, meu agradecimento à Santa. Vi a mobilização popular forçar medidas acanhadas de governo, que com toda a derrota, drenaram a água de boa parte dos alagados que tínhamos na Pedreira.

Quando me perguntam sobre os meus agradecimentos à Santa, todo ano, uma resposta justa me vem de prima. Vivo a graça de não mais encontrar uma lesma no banheiro. E, de ganho,  retomar um corredor que me dá fantasiar, em desabaladas carreiras de fora a fora da casa, encontros com pródigos quintais e com a moça desejando caju com sal.

 

Um comentário:

  1. Vc é um baita escritor com alma antropologica, só nesta leituravivi muito casos. Lk

    ResponderExcluir