sexta-feira, 31 de maio de 2024

crônica da semana - casaquinho felpudo

 Casaquinho felpudo

Quando chegamos do Acre, mamãe cuidou que viesse o casaquinho de todo mundo na bagagem. Cada um tinha o seu. Tecido espesso, dizia-se felpudo, punhos franzidos e golas largas e derramadas para o além do pescoço. Proteção pra lá de bem acabada contra o frio. Peça, rápido descobrimos, que não teria serventia nenhuma aqui. Causava até estranheza aos coleguinhas da antiga Marquês quando nós, montados na gabolice, mostrávamos na rua que tínhamos roupinhas de frio.

Em Belém, nem debaixo de um toró federal faz o frio que nossos casaquinhos esperavam. Mas, subindo o Madeira, o Purus, naquelas paragens ocidentais do Acre, Rondônia e uma beiradinha do Amazonas, desde agora maio, até os triscas primaveris de setembro, a temperatura cai de fazer o beiço rachar.

Agora mesmo, coisa de dois dias atrás, vi na TV a previsão do tempo anunciando a famosa e incompreendida friagem chegando por aquelas bandas. É o contado de maio. De tão justo e certo, que me arvoro a arremedar, dizque, os meteorologistas e traço as expectativas. Também, né, tá na minha história. É batata, todo dia 24 de maio dá aquele friozinho por ali. Sei porque é dia de Nossa Senhora Auxiliadora, padroeira de Porto Velho e neste dia, era feriado e eu não trabalhava. Era a conta e o azeite do azeitado. Não precisava sair para o trampo, metia uma meia, calça comprida, blusa, casaco, um roupão que eu tinha comprado num brechó aqui no Centro Auxilium, com a irmã Clara (tudo a ver), calçava as luvas, aquelas do EPI que a gente usava no trabalho mesmo, e me entocava bem entocado pra ninguém me achar. Ficava o dia todo batendo queixo.

Para nós acostumados com o quente e úmido amazônico não é de prima que entendemos a friagem. Lá mesmo em Rondônia rolavam explicações desencontradas. Uma bem atraente por causa de uma lógica gelada da especulação, dizia que o frio era por causa do descongelamento que ocorria na cordilheira dos Andes. Como as montanhas são naquele rumo, me permitia dormir e acordar todo embrulhado aceitando esta justificativa. Até que percebi, pelo noticiário do clima, que era muita, mas muita coincidência a temperatura cair ali naquela banda do Norte, exatamente no tempo mesmo em que o frio estava tinindo no Sul do país. Era só fazer a ligação, traçar, com algumas curvinhas, o caminho inverso dos rios voadores (um sistema de circulação continental que anos mais tarde eu iria conhecer como um consagrado resultado de pesquisa). Não fossem as curvinhas e as interações termodinâmicas desse ar frio e seco com a grande extensão de floresta encharcada e aquecida, poríamos as meias e as luvas aqui em Belém também. Ouvi dizer que o frio chega, mesmo que abrandado, em Humaitá, ali no Amazonas. Quase à nossa porta. Mais um pouquinho, heim... Eu iria achar é bom. Aprecio e me dou com o recolhimento, com as condutas ensimesmadas, alheias aos arredores, cuidando apenas da nossa pulsação, que o clima frio enseja. Mas não se garante até aqui a friagem não, fiquemos com as nossas mínimas de 24 graus que já estamos no lucro e no moleton.

A friagem veio aquecer minhas recordações, entendo que, por causa das colunas diárias de previsões do tempo para todo o Brasil, quando dei com o fenômeno acontecendo na região de Rio Branco, Porto Velho e entornos. Mas do mesmo jeito, porque quinta-feira passada foi o dia do Geólogo e acredito que os trabalhos que fiz, ligados à Geologia, no início da década de 80 me proporcionaram reviver naquele espaço rondoniense, o tempo do meu casaquinho felpudo, lá no Xapuri, lá no Xapuri, lá no Xapuri.

E também porque meu filho é Geólogo, boa parte dos meus amigos são Geólogos e formam um grupo por quem tenho muita admiração e a quem dedico muito carinho e afeto. A eles meus parabéns e uma vida com muito, ou tantos prazeres forem possíveis, no envolvimento com a Geologia. Esta ciência encantadora. 

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