Prova dos nove
Não
sei o que falaram de mim para o tal de algoritmo, que foi-não-foi ele joga na
minha TL uma tirinha do Calvin. E eu, olha, me dou. Presto reparo. O desenho
trata de conflitos próprios de um molequinho muito ‘dos seu atentado’. Dentro
da família, com os amigos da rua, na escola. A fantasia é um componente que se
destaca na tirinha. Calvin tem um tigre de pelúcia que, nos segredos do garoto,
se anima, ganha vida e partilha com ele incríveis aventuras e profundas
reflexões.
Calhou
de me aparecer um quadrinho cheio de sinceridade e graça, tendo a mãe como
tema. Os dois se divertem na rua e encontram um passarinho machucado. Especulam
sobre o estado do bichinho. Estimam a gravidade do problema. Se há risco do
pássaro morrer. Em outro quadrinho Calvin pede para o tigre tomar conta da
pequena ave e sai correndo pra chamar a mãe. Ainda ouve, Harold, o tigre,
duvidar se mãe, naquela altura do campeonato, pode fazer alguma coisa; e na
correria, Calvin lança a resposta genial: “claro que pode. Eles não deixam a
pessoa ser mãe se não souber dar jeito em tudo”.
Concordo
em gênero, número e no superlativo da verdade mais verdadeira, com o menininho
do desenho. Mãe é plena sabedoria, inventividade, doçura e eficácia. É campeã
absoluta no jeito de corpo, de alma, no equilíbrio da vida e da lida.
Tiro
pela minha. Quer dizer, todo mundo tira pela sua. A melhor mãe do mundo é
sempre aquela mãe do sujeito da oração.
Eu,
por mim, asseguro que o jeito que minha mãe deu em tudo, me permitiu chegar até
aqui. Sou obra das mãos provedoras de Luzia. Lindas mãos.
De
mim, é comum sair histórias de mamãe suavizadas, temperadas com humor. Adoçadas
com pitadas de leveza e traços graciosos.
Tem,
porém, o outro lado. Aquele do compromisso, da responsabilidade, da sisudez na
hora e tempo das obrigações. Minha mãe valorizou muito a nossa preparação para
encarar as lutas diárias e isso passava necessariamente pelo desenvolvimento
intelectual mínimo que nos poupasse sermos ludibriados. Vivíamos do comércio
circunstante, da marretagem, da vendinha de porta, e mais tarde nos
concentramos na barraquinha de feira. Tínhamos que conhecer os dinheiros e
fazer as continhas direitinho. Ordenar cadernos dos créditos ou dos ‘em a ver’.
Fazer compras para revendas, definir preços e dimensionar o lucro ao alcance
restrito do nosso cumê, beber, vestir e estudar. Mamãe era a regente das
sinfonias organizacionais que inventávamos a cada dia, em favor de nossas vidas
e dos enfrentamentos e superações de aperreios e encalacres. Exercia esta
liderança amparada por propriedades íntegras dentro dela que só se justificavam
com tal envergadura por força de uma vontade enorme que tinha em continuar
viva, respirando, criando a filharada, e sonhando com um futuro.
As
ferramentas pedagógicas que ela utilizava, herdei. Estão benzinho aqui na minha
mesa, o caderninho de contas, com números de margem a margem e até além delas;
a pequena agenda com nomes dos fregueses mais fiéis e a bolsinha com um
atracador invocado, das antigas, onde duas hastes com esferas maciças na ponta,
montam-se sobrepostas na posição certa de fechar o compartimento das miudezas e
moedinhas que usávamos para troco.
havia
dias que o sol raiava e a gente só tinha o numerário da bolsinha de miudezas
para prover tudo em quanto. Mas é verdade. Deus só deixa a pessoa ser mãe se
ela der jeito em tudo. O custo era mamãe se animar e se elevar em uma imensidão
de coragem tal que o encalacre estava superado. Ao final da jornada, uma
comprinha no supermercado Sandra estava garantida.
Vou
ao caderno dos números e elaboro a continha extremamente comovente de maio. 04
de maio, da minha companheira; mais 12, o segundo domingo; mais 14, meu dia de
filhinho; mais 15, o dia do adeus de minha heroína. Somo as parcelas e verifico
se está certo (mamãe me ensinou tirar a prova dos nove).
Está.
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