Deixa o pato passar
Gripe
braba. Uma malemolência. Panemice e empombalecimento. Não tô me garantindo pra
nada. Nem pra escrever. Quem me acode é o filhinho. Fiquem com este texto
comovente de Argelzinho Sodré:
“Vim
morar com a vovó aos 11 anos de idade. Antes, na minha rotina de moleque, via minha
avó cobrindo a ausência dos meus pais em dias muito específicos. Em caso de
doença, de viagens... Ela se abalava da Pedreira pra Barcarena. Lá com os seus
50 e poucos, uma mulher preta, baixinha, cabelo meio liso meio chacheado. Vinha
andando com aquela perna tortinha, cabando prum lado mais do que pro outro.
Outras
vezes, vínhamos pra Belém. Lá no fundo, lembro das ruas sendo aterradas, o
começo da construção da Aldeia Cabana. Mas lembro muito bem daquela palafita,
casa de madeira, em cima da água, com 2 vãos, o de baixo era sala e cozinha e o
de cima, no segundo andar, ficavam várias camas. Naquela casa tinha que ter
muita cama. Nunca se sabia quem chegaria pra descansar ali, no colinho de vovó.
O banheiro era no final do quintal.
Tinha
mina de carapanã e ratos às pampas, dificilmente a gente conseguia dormir
tranquilamente. Era um zumbido ziiiiiiiiiim no ouvido, era cada ferrada que vou
te falar viu… se colocasse o mosquiteiro, o calor não deixava ninguém em paz.
Abríamos a janela e ligávamos o ventilador no 3. Nessa hora começava rato a
invadir a casa pela janela e era todo aquele ki-ki-ki. Mas a vó dava umas
vassouradas nos bichos, ajeitava e acalmava. Não tinha tensão que resistisse à
historinha do pato. Há toda uma introdução na cabeça da vovó, que ela começa
contando, lentamente, docemente, e no fim ela diz que a gente tem que deixar o
pato passar, deixa o pato passar, deixa o pato passar, deixa o pato… zzzzzz.
Dia
8 de janeiro de 2007, acordei a primeira vez na casa dela como morador oficial.
Fui atrás de carinho, de colinho de vovó. Encontrei uma pessoa que ama, cuida e
administra uma família inteira acampada ali, daquele quartel general do bem.
Fica até difícil acertar o nome da galera que ocupou e resistiu (residiu) a
Pirajá, geralmente lá pela quinta tentativa a gente chega perto. A casa já não
era mais em cima da água.
Imaginei
uma mulher triste e cansada, dona do olhar dos Nunes, que sempre quer dizer
algo. Mas quite. Foram 8 filhos, um morreu criança. Todos foram criados pelos
outros e alguns pelos outros e por ela. Muitos netos. O certo é que quando
vieram os netos, apareceu a nova versão, de mulher pronta pra tudo, pela vida,
saúde e felicidade dos pequenos.
Uma
das pessoas que mais acreditou e investiu em mim, na minha carreira acadêmica,
na minha saúde mental e física. Me ensinou todos os desafios de ser preto na
perifa e criou umas máximas: não pode andar sem camisa; não pode andar sem
documento; perto de polícia esteja sempre com o uniforme da escola. Me ensinou
a andar de Pedreira-Lomas, ou seja, andar Belém inteira. E quando eu arriscava
alguma crítica inocente aos governos do PT, ela dizia: nem tirou os panos da
bunda ainda, não tinha que tá falando nada. E, se questionava a existência de
Deus advertia ‘quanto mais estuda, mais ignorante fica’.
Vó,
eu vi Deus várias vezes, ele tem a sua cara, ele é uma mulher preta dançarina
de carimbó. É complexo, contraditório, deve gostar de acordar tarde, faz um
peixe frito incrível, já vendeu sanduíche na esquina, terminou o ensino médio
depois dos 50. Ele anda assim, cabando mais pra um lado e sente dor no joelho e
no dedão do pé, e de vez em quando não suporta anarquia. Te amo. Deixa o pato
passar.
E
vó, di boa, vou cuidar da minha irmã e olhar pros dois lados sempre na hora de
atravessar a Itororó.”
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