Retrato velhinho
Este
ano, restaurei o retrato de casamento dos meus pais. De minha mãe, não, tenho
outras fotos, mas do meu papaizinho, o único registro é o que me mostra o
retrato. É daquelas composições gráficas antigas, que nem retratam fielmente os
retratados. Tem acabamento a peso de retoques retorcidos, imprecisos, sem a cor
autêntica da tez dos modelos e exibe um sugestivo fundo azul que levava
minha avó, quando nos descrevia a fotografia, a afirmar que aquela pose foi
tomada na imensidão insondável do céu (e isso para mim sempre foi uma
inabalável verdade). Só muito amor mesmo para reconhecer ali, minha mamãezinha
linda e o sorriso encantador de meu papai. Dando todos os descontos, relevando
as tecnologias que eram possíveis lá naqueles ermos do Xapuri, em tempos
outros, vi a chance e providenciei uma reconstituição, porque o papel já estava
bem carcomido e acompanhei com carinho a execução do reavivamento da imagem. Emoldurei
e pus o retrato na parede da sala outra vez, agora neste outubro da graça de
Deus e da Virgem Maria.
Há
um sentido permeando a volta do quadro à parede. Representa uma rememoração.
Padre Lourenço, nosso orientador Salesiano, quando explicava a Eucaristia,
dizia que era um ato de tornar presente de novo, de rememorar a paixão com todos
os seus compromissos e implicações. Então, papai e mamãe estão ali para nos
mostrar, à nossa família, que temos sempre a chance do diálogo, da reinvenção
de idéias, do aconselhamento desapegado de interesses. A mim, como pai, me
serve de inspiração recontar, recalcular cada passo que dei junto à minha mãe,
que enviuvou cedo, na construção de minha personalidade e na adaptação dela,
querida mamãezinha, aos tempos que se moviam velozmente. Nos erguemos indo lá
nas convicções dela e vindo cá, nos meus anseios. Luto todos os dias para que a
minha relação com meus filhos seja este ir e vir, este dar e receber.
Mamãe,
na foto, tem um sorriso de Monalisa. Não esconde, porém, enigma ou ironia.
Talvez uma certeza atávica. Dá os papos: não é fácil romper crenças ou formatos
estruturais de dominação.
Pus
o quadro na parede, rogando por bênçãos e proteção porque fiquei desnorteado,
coisa de mês atrás, com um textão que li de uma pessoa que se acusa amigo. Um
festival de inconsistências. Mas o destaque foi o valor que dá a relação pais e
filhos. Diz o texto que, se este ou aquele comportamento observado não confere
com os ideais dos pais, é resultado do descuido, da falta de método utilizado
no lar para formar o caráter dos filhos e filhas. Neste ponto eu bambeei. A
narrativa a partir daí coloca as crianças, os adolescentes, jovens, como
passivos, como meros receptores de leis e condutas pré-estabelecidas. Não dá e
nem vislumbra ferramentas para livres interpretações, não estabelece via alguma
de volta ou reivindicação. Achei este texto de uma arrogância típica daquelas
pessoas que, como diria minha mãe, só querem ser o que a folhinha do ano não
marca.
Não
me arvoro à menção que seja, de ser o melhor pai do mundo. Digo apenas que
pelejo. E certifico. Nos últimos anos aprendi pacas com meu filho, com minha
filha. Por eles, assumi conceitos outros de convivência, assimilei tolerância
onde eu radicalizava. Nossa interação mais pródiga se deu na música.
Apresentei-lhes Cartola, Milton, Chico, Caetano e me voltaram com Pelé do
Manifesto, os meninos da Zeromou, Tulipa Ruiz, e já velho, me danei a ouvir
Beatles, por causa dessa troca.
Pus
o retrato velhinho na parede, rememorei, quero forjar um ato de tornar o amor
presente de novo. Bença pai, bença mãe.
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