sábado, 10 de setembro de 2022

crônic da semana - sonho que tive

 Gentes

Dou o maior valor nos sonhos. É coisa de impressionar. Ouvi algures que o sonho, mesmo aquele que roteiriza uma vida toda, não dura mais que poucos segundos. Não sei se é válida esta afirmação. Um dia vou me envolver no resultado de alguns estudos e me certificar desses detalhes, mas sei lá, acho que tira o encanto. Até lá, às certificações, o termo dos sonhos e das viagens que a gente faz, enquanto dorme, bom mesmo é deixar rolar.

Faz poucos dias, coisa de uma semana, sonhei com a primeira vila operária que morei, quando cheguei a Rondônia. Isso há quase 40 anos. E olha, meu sonho foi buscar detalhes. Cantinhos, nichos de reflexões, beiradinha de igarapé, recanto das diversões, minha casinha, as pedras que eu colecionava, as fotos de Belém, dos amigos e dos amores que me matavam de saudade e que eu deixava em lugar estratégico, defronte do meu choro diário... Um sonho tão perfeito! Sonorizado em dolby stereo, colorizado em todos os tons do espectro, com passarinhos cantando, carro passando ao longe, barulho de panelas na cozinha, lá em cima, além da ladeirinha e um canto de trabalho da Dona Adélia enquanto preparava os pratos do dia... o zunido do vento invadindo o talvegue dos igarapés desde lá de longe até cá embaixo, no cenário do meu sonho, rés o meu travesseiro.

Não sei vocês, a ser sincero, não sou de lembrar, confesso, mas dizque também, que dos sonhos, é normal a gente esquecer logo que acorda, por isso corri aqui para o computador, pra registrar este um, ainda na fresca da manhã. É que exato este sonho me chegou com uma retórica rígida, munida de realismo espetacular, cheio de sentidos, tato, cheiros, meu barraquinho...

A bem da verdade era um bloco de alojamento composto por dois quartos. Chamo de minha casa porque durante a maior parte do tempo que vivi ali, morei sozinho no bloco. Era como se habitasse numa casinha com dois quartos. Os blocos ficavam no entorno de um espaço multiuso que chamávamos de refeitório. Área ampla, de um salão grande com a mesa se estendendo e dominando todo um lado do compartimento. Ali, era também nosso local de convivência e recreação. Havia um bar, com bebida de tudo quanto é qualidade, de cor e teor alcoólico, e olha, era bem freqüentado, porque o que fazíamos muito por lá era beber. Dava de tardezinha depois do expediente, todo mundo encostava no balcão, sujo mesmo do trampo e entornava o caldo. No destaque, uma mesa de bilhar dominava o lado oposto ao balcão. Era o teatro de operações onde nos debatíamos em acirradas contendas. Meio largadinha, uma TV pregada na parede, que ninguém nem ligava porque não tínhamos parabólica e o sinal da região era bem fraquinho, só rolava um chiado e um chuvisco intenso. Tudo isso fazia parte do agrado, era o chama da empresa para nos segurar naqueles sertões do oeste brasileiro. Ao pegado, na extensão do salão, ficava a cozinha que era comandada por dona Adélia, nossa cozinheira, aquela que nunca errava a mão e produzia nosso cumê com um livro de receitas (dela mesma) debaixo do braço (e que saborosas lembranças! No sonho, eu senti o cheirinho dos carinhados pratos que ela criava e, ora veja, o mais fantástico, a base de quiabo).

De manhã, acordei mais afeito aos ânimos de Rondônia em 1983, nos estertores do regime militar, que aos dias plúmbeos atuais malinados por nostalgias espasmódicas golpistas.

Um sonho perfeito, tão real, que me cobrou os pés mergulhados no igarapé da memória. Que me propôs, assim como há 40 anos, lutar sem reservas e sem limites pela vida. Não vi gentes (nem mesmo D. Adélia), no sonho. Minha gente anda triste.

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