Tomate é fruta
Enfrentar
os dias atuais é missão titânica. A gente tem que se abastecer de coragem e
argumentos para não virar de lado na cama desvanecido e deixar o tempo trotar
implacável nas nossas costas.
Eu
tento uma tática que está dando certo para não sair do sério a toda hora. E vem
de um conveniente apagamento, um providencial apartamento de toda maledicência,
de toda provocação, de toda a live exposta no maior volume, para todo mundo
ouvir. Consiste em começar o dia me envolvendo nas artes.
A
música dando o tom da prosa. Os dias mais densos, podem ser permeados de Beatles.
Quando é possível uma distensão, música paraense, meu compadre Edir Gaya, os
interiores de Nilson Chaves e todos os outros encantamentos de ritmos
disponíveis para a gente ouvir na plataforma preferida. O ambiente partilhado na
cidade, no trabalho, no transporte, pode até estar remoso, mas se tem a música,
tudo se ajeita. A paz reina provedora. E isso não significa alienação. Dá luz
aos problemas, foco aos riscos e nos proporciona a resistência necessária e
urgente para enfrentá-los. A música salva vidas, empregos e mentes.
De
par com a música, a literatura. Ajuda que só. Ativa a concentração, a emoção.
Desembrutece o espírito. Potencializa a compreensão do mundo. Começo o dia
lendo. Romances, poesias, biografias, textos jornalísticos. Faço um rodízio de
gêneros. Dia desses, revisitei Dalcídio. Por agora, me envolvo nas narrativas
contidas no terceiro volume de “Escravidão”, do jornalista Laurentino Gomes.
Edição robusta elaborada em três massudas publicações, que faz abordagem atenta
dos 300 anos das práticas escravistas no Brasil. Uma composição, penso eu,
suscetível aos adendos acadêmicos, mas para nós leigos, um mundo rico de informações.
A
leitura matinal renova a mente e mesmo diante de temas realistas e duros
demais, sempre nos oferece o estilo, O quê literário, como valência, como
contraponto. Como dizem os teóricos, a transgressão, a transcendência. Não
minto. Tô ali, ligado no desenrolar dos fatos, mas com um olho no peixe outro
no gato. Só na bicora de uma construção atraente, uma surpresa estética. Uma tessitura
assindética minimalista, “O Brasil está um desespero só”; metafórica, “este
homem é um monstro” ou de uma elaboração científica de difícil apreensão, “o
tomate é uma fruta”.
A
leitura, a música, o tomate nos alimentam. Formam um conjunto básico de
nutrientes emocionais que se estabelecem como pauta para pensamentos mais
saudáveis no correr do dia e que podem até relar em aspirações ao bem e ao bom
da alma. E pensamento, sabemos, voa.
Estas
artes nos mostram que não há mundo apartado de nós, não há subterfúgios ou
negações de dores, mentiras no âmago da natureza ou cinética irreversível na
composição textual, mesmo que na forma assindética. Além de qualificar o chão
esturricado que pisamos, o mergulho no oceano das artes, nos indica atalhos que
tornam nossa caminhada menos penosa. Cuida para que o trotar do tempo em nosso
lombo seja mais leve e a irritação diária de fácil , passe a ser mais difícil,
que tenha poucas chances de nos vencer.
E
o melhor: esta imersão nos faz pensar. Refletir sobre novas estratégias de
sobrevivência neste mundo besuntado em ódio, fake news, deepfaces e tantos
outros anglicismos manipulados com a mesma inocência fonética para dar nome aos
sorvestes, só que nos dias de hoje, adaptados para camuflar o mal.
Ao
final do dia, colhemos os frutos: no entendimento que tomate é uma fruta e na
compreensão que a escravidão é uma chaga ainda aberta no tecido social
brasileiro. E cantarolando...
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