sábado, 20 de agosto de 2022

crônica da semana - ninguém escreve ao coronel

 Ninguém escreve ao coronel

Pode até não ser o rabiscado exato dos fatos, esta minha afirmação, mas pelo que vivi uns tempos atrás, me parece ser nessa mesminha batida o caso.

O peão é ralado. Não se une. O bacana, mais ajeitado de grana, não. O aristocrata é ali, imbricado. Um no cangote do outro. Respirando o mesmo ar, comendo da mesma comida, bebendo da mesma bebida. Os bacanas se dão. Peão, não. Peão é num desapego sem razão.

Sobre o coronel: este é personagem de García Márquez que, no desenvolvimento do romance, consome anos de sua vida à espera de um comunicado do governo sobre sua aposentadoria que nunca chega. Uma vez por semana ele vai ao porto encontrar a lancha que traz as correspondências e a frase que ouve do carteiro é sempre a mesma: “ninguém escreve ao coronel”.

Esperanças criadas por personagens ligados de alguma forma a graduados, e refletidas em angustiante espera por um comunicado, um ofício estão presentes em outras versões da arte. O cartunista Addison Morton Walker criou o general Dureza, nos quadrinhos do Recruta Zero e o municiou da mesma e inquebrantável esperança de um dia receber um alô do Pentágono. Engalanados em narrativas diferentes na forma, compõem o mesmo conteúdo daqueles que esperam por um sinal de um grupo organizado que os conheça e os reconheça, e que talvez, no braseiro das desditas, nunca chegue. Formam uma marginalidade que traduz a realidade cruel da desunião, do apartamento de interesses, da quebra de juras e credos. É o caso de escolhas e preferências. Abonar uns parças, aliar-se por conveniência àqueles grupos e abandonar outros, mesmo que isso signifique contradição, infidelidade, conflito de classe, alta trairagem ou até uma inocência entorpecida irrigada pelos fluidos irrefreáveis do sistema, são artes da nossa frágil compleição social .

Tornar para o tempo e se pegar esquecido pelo mundo sem direito a uma cartinha, um ombrinho sequer é experimentar o amargo da solidão, a dor da impotência, o vazio de qualquer luta. O apagar de sonhos e esperanças.

É o ferro esquentando no couro da gente. Ardendo de nos levar ao sofrimento e ao desencanto. Um dedo no olho a nos legar a frustração.

Foi o que percebi naquele dia todo que varou pela noite, na sala de observação da emergência em um hospital de Barcarena.

Estávamos eu, peão do chão da fábrica e um graduado, regado no tutu, gente grande da cidade. O custo da ocasião era respondermos aos medicamentos e esperarmos o resultado dos exames. Como não havia ordem de internação, não tinha o cumê ou outras atenções.

O tempo que fiquei por lá era gente chegando para assistir o ungido. Era maçãzinha, pêra, uvas sem caroço. Revistas da semana, conversio, uma vuca dedicada a dar comodidade ao observando. O peão aqui, ninguém visitou. Nem uma bula de remédio a mim me foi dada a ler, um completo de pastel e suco, um pão da esquina. Nada. Se eu quisesse beber uma água, tinha que ir arrastando o suporte do soro até o bebedouro. Xixi, então, só ia quando não me agüentava mais e com o sangue voltando da veia por causa dos tropeções que dava pelo caminho. O privilegiado até me oferecia coisinhas que sobravam, um isso doce, um aquilo azedinho. Menos por frustração e mais por orgulho de operário, mesmo na broca, declinava das ofertas, alegando uma queimação no estômago, uma azia de mentirinha.

É o caso: Ninguém escreve ao coronel. A parceirada tira férias, assume compromissos vãos, arruma uma constipação...Acaba a tinta da caneta...O peão é ralado. Não se une.

O alto clero, não. A turma dos bacanas mais aqueles de bufufa e de pose, são, ó, unha e carne.

 

 

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