Ninguém escreve ao coronel
Pode
até não ser o rabiscado exato dos fatos, esta minha afirmação, mas pelo que
vivi uns tempos atrás, me parece ser nessa mesminha batida o caso.
O
peão é ralado. Não se une. O bacana, mais ajeitado de grana, não. O aristocrata
é ali, imbricado. Um no cangote do outro. Respirando o mesmo ar, comendo da
mesma comida, bebendo da mesma bebida. Os bacanas se dão. Peão, não. Peão é num
desapego sem razão.
Sobre
o coronel: este é personagem de García Márquez que, no desenvolvimento do
romance, consome anos de sua vida à espera de um comunicado do governo sobre
sua aposentadoria que nunca chega. Uma vez por semana ele vai ao porto
encontrar a lancha que traz as correspondências e a frase que ouve do carteiro
é sempre a mesma: “ninguém escreve ao coronel”.
Esperanças
criadas por personagens ligados de alguma forma a graduados, e refletidas em angustiante
espera por um comunicado, um ofício estão presentes em outras versões da arte.
O cartunista Addison Morton
Walker criou o general Dureza, nos quadrinhos do Recruta Zero e o
municiou da mesma e inquebrantável esperança de um dia receber um alô do
Pentágono. Engalanados em narrativas diferentes na forma, compõem o mesmo
conteúdo daqueles que esperam por um sinal de um grupo organizado que os
conheça e os reconheça, e que talvez, no braseiro das desditas, nunca chegue.
Formam uma marginalidade que traduz a realidade cruel da desunião, do
apartamento de interesses, da quebra de juras e credos. É o caso de escolhas e
preferências. Abonar uns parças, aliar-se por conveniência àqueles grupos e
abandonar outros, mesmo que isso signifique contradição, infidelidade, conflito
de classe, alta trairagem ou até uma inocência entorpecida irrigada pelos
fluidos irrefreáveis do sistema, são artes da nossa frágil compleição social .
Tornar
para o tempo e se pegar esquecido pelo mundo sem direito a uma cartinha, um ombrinho
sequer é experimentar o amargo da solidão, a dor da impotência, o vazio de
qualquer luta. O apagar de sonhos e esperanças.
É
o ferro esquentando no couro da gente. Ardendo de nos levar ao sofrimento e ao
desencanto. Um dedo no olho a nos legar a frustração.
Foi
o que percebi naquele dia todo que varou pela noite, na sala de observação da
emergência em um hospital de Barcarena.
Estávamos
eu, peão do chão da fábrica e um graduado, regado no tutu, gente grande da
cidade. O custo da ocasião era respondermos aos medicamentos e esperarmos o
resultado dos exames. Como não havia ordem de internação, não tinha o cumê ou
outras atenções.
O
tempo que fiquei por lá era gente chegando para assistir o ungido. Era
maçãzinha, pêra, uvas sem caroço. Revistas da semana, conversio, uma vuca
dedicada a dar comodidade ao observando. O peão aqui, ninguém visitou. Nem uma
bula de remédio a mim me foi dada a ler, um completo de pastel e suco, um pão
da esquina. Nada. Se eu quisesse beber uma água, tinha que ir arrastando o
suporte do soro até o bebedouro. Xixi, então, só ia quando não me agüentava mais
e com o sangue voltando da veia por causa dos tropeções que dava pelo caminho.
O privilegiado até me oferecia coisinhas que sobravam, um isso doce, um aquilo
azedinho. Menos por frustração e mais por orgulho de operário, mesmo na broca,
declinava das ofertas, alegando uma queimação no estômago, uma azia de
mentirinha.
É
o caso: Ninguém escreve ao coronel. A parceirada tira férias, assume
compromissos vãos, arruma uma constipação...Acaba a tinta da caneta...O peão é
ralado. Não se une.
O
alto clero, não. A turma dos bacanas mais aqueles de bufufa e de pose, são, ó, unha
e carne.
Nenhum comentário:
Postar um comentário