Pivide, pivete e a paz na rua
Eu
achava que era uma corruptela de pivete. Um trato reduzido, apequenado, de
desdém, desprezo. Forma de traçar uma zanga por meio de apelido. Até encontrei
palavra similar, mas ao projetar no passado, não rolou a razão de ser. Achei
pevide. Inclusive nos dizeres ali das bandas do Extremo Norte. Parecendo mesmo
ser um vocativo, um termo de atenção a alguém, que, no entanto, carece de uma
releitura, um repasse no contexto do falar marajoara, já que o dicionário
aponta pra outros lados.
Há
um eco pairando no ar, trazendo de volta as zangas da rua. Para todos os
efeitos e as atenções, tome-se o termo pivide com uma alcunha. Uma pequena
arenga escondida nos quiquiquis da rua e que depois de um escapole de cá, um
nem te falo, dali, uma dissimulada corrente de alcovitagem, chega no ouvido da vizinha
agraciada.
E
assim se davam as intrigas de tamanhas as velhas senhoras da rua, já mães de
muitos, cheias de coisas pra fazer. Com um tempinho, porém, certo para as
picuinhas. E a gente no meio. A molecada não maldava entre si. Na patota, todo
mundo se falava, mesmo os filhos e agregados das litigantes. A crise era lá em
cima (e a gente até atiçava no leva e traz). Cá embaixo era a combina da bola
de travinha, uma visita aos quintais minados de camapu, uma partida de
bandeirinha pra fechar o dia à luz dos vagalumes já que por causa do blecaute,
a luz da rua demorava pacas a voltar.
Debaixo
da mangueira, em frente à taberna do Saulo pai de todos (diziam assim dele por
causa do caderno que tinha com os ‘em a ver’ de todo mundo da rua), durante o
dia aparecia um mendigo com um saco cheio de bregueços inservíveis e muita
história pra contar. Também fazia seus fuxicos. Julgava. Apontava ser pecado
mortal do seu Saulo da taberna, viver com duas mulheres na mesma casa. Nessa
hora, tinha um ar severo, de inquisidor mesmo. Sobre ele derramava-se uma
insuspeita serenidade e dava o veredito. Saulo ia arder nas chamas eternas.
Quase que instantaneamente, puxava uma folha de abade, tecia um cigarrinho, dava
uma talagada na garrafa de cachaça que carregava misturada às traias dentro do
saco, arremedava nos enxotar, fazia menção de correr atrás da gente. Não queria
mais companhia. Mas a sombra da mangueira era de todos, fazíamos um trato e
ficávamos por ali, até o sol esfriar e dar a hora de formar os times para a
bola da tarde, no leito da rua. Quando começava o jogo, o homem ia embora,
sumia ali pra baixada da Pedreira. Noutro dia estaria ali de novo a ralhar com
a gente, contar que era piloto na guerra, maldizer seu Saulo e confessar que
havia namorado as pivides da rua noutros tempos, por isso ninguém mexia com
ele. Sabia coisas, de arrepiar, daqueles quintais minados de camapu.
Vai
ver era isso. Histórias escondidas, soterradas pelo recitado solene: se tiver
vergonha na casa, não fala mais comigo. Nem passar pela caçada da outra, se
passava. Era previsto sempre um arrodeio, um pelo sinal e nas fases mais
tensas, uma cuspidela de nojinho no chão da pivide. Tirando pelo que o homem da
mangueira falava, era uma tática eficaz mesmo, ficar de mal. Evitava trazer ao
presente as traquinagens de outros tempos.
Certo
dia, ficaram de bem. E nós, moleques, nem soubemos. Fui até a vizinha da frente
e me enxeri na futricagem: olhe, posso lhe contar o que a pivide que mora lá
perto da borracharia falou ontem? Fui repreendido na hora. Chega de apelido,
moleque, respeita. Ela tem nome. E umbora parar com a fofoca!
Rolou
a paz e o homem da mangueira não apareceu mais.
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