domingo, 19 de junho de 2022

crônica da semana - sonambulismo

 Sonambulismo

Nos dias, até hoje contados de junho, eu e a maioria das minhas mais antigas amizades atravessamos o horizonte de eventos, marcamos na folhinha 59 anos de existência e miramos lá na frente a fase dos sessentões. São amigos cultivados há muito tempo. Da época, como se dizia antigamente, do científico, que para nós foi a Escola Técnica. Um deles, o recordista, vem bem de antes que desde que tempo. Da Aparecida, data esta amizade, período pueril, dos primeiros caminhos suaves. Nos encontramos por agora, para uma comedida celebração. Fizemos um balanço da jornada, contamos as perdas, auferimos os ganhos e...refletimos sobre a vida.

A mim me vale que, o bom da melhor idade se achegar é nunca mais ter sido domado pelo sonambulismo.

Mas também, é só o que conta das valências. O resto é uma vuca de medicamentos contínuos. Só de pingar são cinco, e uma leve impressão de que estou me guinando à ranzinzagem.

Antes de derrapar para os lados casmurros da alma, repenso, reverente ao tempo: o que fiz para aportar neste estirão. O que me dá a merecendência às leis sexagenárias daqui a mais uns meses? Perscruto sinais do bom pai para um motivo. O que terá de grandioso ou relevante me reservado ofertar à humanidade? Porque olha, estive umas quantas vezes em tempo de expirar e escapei. A mais radicalmente crítica foi aquela ocasião no helicóptero. Não que eu estivesse caído no meio da selva ou entrado em pânico com a ressonância dos esquis no solo. Aconteceu foi que certa vez, ao desembarcar, no lugar de descer e seguir a direção do meu nariz, dei meia volta, a procura de sei lá o quê e passei por baixo da cauda do bicho. Simplesmente, e por uma insuspeita providência, por um triz me livrei de, por um lado ser sugado pela turbina e pelo outro, coisa de metrinho e pouco de salvadora distância, ser triturado por aquela palheta que fica na rabeira da aeronave. Sufoco, molequinho! O piloto me cortou e arou na esculhambação, do lado de lá. Soltando fogo pelas ventas turbinadas, perguntou se eu queria me suicidar ou se eu era só pateta mesmo. Eu, heim. Aceitei a cipoada na humildade. Errei dicunforça. Pra nunca mais.

Teve aquela outra vez que minha irmã me derrubou do colo e minha perna deu certo numa lata de conserva aberta. Foi uma aula de anatomia dos membros inferiores, para uma leva assustada de seringueiros que vieram para me acudir. A perna ficou apartada, balangando. Eu tinha dois anos e agora no rumo dos sessenta, ainda ostento uma teba d’uma cicatriz na articulação do joelho direito. E mais um ponto, sem ponto, para a providência: o golpe fechou sem que nenhuma linha unisse as pontas. Colou beiço com beiço, a ferida, só na base da reza e da borra de café, segundo as histórias veridicamente fantásticas do Acre, contadas pela minha mãe.

Escapei também de um asfixiamento com cuspe. Pois não é que aconteceu! Vínhamos de Barcarena, pela alça, quando alguém distribuiu umas mentas azedinhas. Ao primeiro contato com o bombom, o sumo foi direto ao grugumim. E como é que respira? Quando o motorista percebeu que eu me aperreava, me batia e estava ficando roxo, parou o carro. Eu abri a porta e me joguei no chão. Tô vivinho aqui, salvo pela acrobacia que fiz e que automaticamente abriu minha epiglote.

Tô na contagem do cubo de gelo. Tenho mais tempo imerso no líquido do passado do que à frente. Não inventei um emplasto que cure azia ou melancolia, não fiz uma revolução que tirasse a maldade do mundo. Os ensejos não dão as caras. O que será? Que atos, palavras ou omissões demasiadamente humanas a mim estão reservadas?

 

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