Sonambulismo
Nos
dias, até hoje contados de junho, eu e a maioria das minhas mais antigas
amizades atravessamos o horizonte de eventos, marcamos na folhinha 59 anos de
existência e miramos lá na frente a fase dos sessentões. São amigos cultivados
há muito tempo. Da época, como se dizia antigamente, do científico, que para
nós foi a Escola Técnica. Um deles, o recordista, vem bem de antes que desde
que tempo. Da Aparecida, data esta amizade, período pueril, dos primeiros
caminhos suaves. Nos encontramos por agora, para uma comedida celebração.
Fizemos um balanço da jornada, contamos as perdas, auferimos os ganhos
e...refletimos sobre a vida.
A
mim me vale que, o bom da melhor idade se achegar é nunca mais ter sido domado
pelo sonambulismo.
Mas
também, é só o que conta das valências. O resto é uma vuca de medicamentos
contínuos. Só de pingar são cinco, e uma leve impressão de que estou me
guinando à ranzinzagem.
Antes
de derrapar para os lados casmurros da alma, repenso, reverente ao tempo: o que
fiz para aportar neste estirão. O que me dá a merecendência às leis sexagenárias
daqui a mais uns meses? Perscruto sinais do bom pai para um motivo. O que terá
de grandioso ou relevante me reservado ofertar à humanidade? Porque olha,
estive umas quantas vezes em tempo de expirar e escapei. A mais radicalmente
crítica foi aquela ocasião no helicóptero. Não que eu estivesse caído no meio
da selva ou entrado em pânico com a ressonância dos esquis no solo. Aconteceu
foi que certa vez, ao desembarcar, no lugar de descer e seguir a direção do meu
nariz, dei meia volta, a procura de sei lá o quê e passei por baixo da cauda do
bicho. Simplesmente, e por uma insuspeita providência, por um triz me livrei
de, por um lado ser sugado pela turbina e pelo outro, coisa de metrinho e pouco
de salvadora distância, ser triturado por aquela palheta que fica na rabeira da
aeronave. Sufoco, molequinho! O piloto me cortou e arou na esculhambação, do
lado de lá. Soltando fogo pelas ventas turbinadas, perguntou se eu queria me
suicidar ou se eu era só pateta mesmo. Eu, heim. Aceitei a cipoada na
humildade. Errei dicunforça. Pra nunca mais.
Teve
aquela outra vez que minha irmã me derrubou do colo e minha perna deu certo
numa lata de conserva aberta. Foi uma aula de anatomia dos membros inferiores,
para uma leva assustada de seringueiros que vieram para me acudir. A perna
ficou apartada, balangando. Eu tinha dois anos e agora no rumo dos sessenta,
ainda ostento uma teba d’uma cicatriz na articulação do joelho direito. E mais
um ponto, sem ponto, para a providência: o golpe fechou sem que nenhuma linha
unisse as pontas. Colou beiço com beiço, a ferida, só na base da reza e da
borra de café, segundo as histórias veridicamente fantásticas do Acre, contadas
pela minha mãe.
Escapei
também de um asfixiamento com cuspe. Pois não é que aconteceu! Vínhamos de
Barcarena, pela alça, quando alguém distribuiu umas mentas azedinhas. Ao
primeiro contato com o bombom, o sumo foi direto ao grugumim. E como é que
respira? Quando o motorista percebeu que eu me aperreava, me batia e estava ficando
roxo, parou o carro. Eu abri a porta e me joguei no chão. Tô vivinho aqui,
salvo pela acrobacia que fiz e que automaticamente abriu minha epiglote.
Tô
na contagem do cubo de gelo. Tenho mais tempo imerso no líquido do passado do
que à frente. Não inventei um emplasto que cure azia ou melancolia, não fiz uma
revolução que tirasse a maldade do mundo. Os ensejos não dão as caras. O que
será? Que atos, palavras ou omissões demasiadamente humanas a mim estão
reservadas?
Nenhum comentário:
Postar um comentário