domingo, 16 de janeiro de 2022

crônica da semana- a primeira noite

 A primeira noite de um homem

Eu estava no terraço do Manoel Pinto e, lá de cima, Belém era toda minha. Amei intensamente a cidade naquela noite.

Cabelos longos de cabocla franjando o esguio corpo no leito da Alcindo Cacela (sedutor horizonte de fuga da Pedreira) era Belém naquela noite nazarena. O largo do arraial era o beijo doce e prolongado nos escurinhos (de canto com o corredor de mangueiras). Era minha iniciação, a minha entrega aos caprichos e carinhos, aos zelos sazonais, aos ritmos de dança e contemplação. Era também a anunciação de um embrenhar-me sem regras entre canais e vielas, trilhas e varadouros com o reggae reinando na ladeira acanhada e despintada da passagem Secundino, nem primeira, nem alegre, nem triste. Poeta.

O transe no rodopio do carrossel, o algodão doce melando de melado minha alma, as bonecas de olhos de plástico descolando (misto de terror e esquisitice, na primeira noite). O largo era uma fatia destacada do bolo multigeográfico e sentimental. Belém. A Santa de olho no delírio ponta-cabeça que o Tira-prosa ensejava. Pronta para acudir o ser delirante que eu era. Alguém baldeou de lá a cá, certa vez, uma gosma translúcida e viscosa, mas não foi nesta minha primeira vez. Soube depois. Boatos maldosos do arraial, talvez? O Tira-prosa mudou de nome.

Minha primeira vez rapazinho autônomo. Sem mãos dadas com mamãe. Desafiando a paciência do cobrador do coletivo no mergulho acrobático por debaixo da borboleta, e um tilintar de agrado na mesinha coletora das passagens. Ousado. Mão no bolso, mão pro céu, caminhar entre as gentes, mãos erguidas pedindo bença pras torres da Basílica. Mãos segurando firmes no lombo do elefante orelhudo que me domava inocente rodando zonzo no carrossel.

Eu vestia calça comprida, na minha primeira noite, porque mamãe disse que já era a hora de andar sozinho e deixar o short só pras coisas vulgares. Tinha uns cruzeiros novos e as moedas do cobrador. Ainda passei pelo trabalho da mamãe. Ela me atendeu com um pastel folheado e um Guarasuco. Anotou tudo no caderninho de ‘em a ver’ que guardada na gaveta e que registrava os débitos que ela fazia na casa pois, ora pois-pois, o português dono da padaria não dava ponto sem nó. Minha camisa tinha a gola esticada, o que me fazia ficar penso para um lado. Pode ser que não, que não influenciasse meu centro de massa, mas eu me sentia assim, penso por causa daquele balãozinho que a gola dava pro lado. E foi assim, flutuando lateralmente, inebriado pela minha primeira noite que perdi a pureza acreana, o medo menino, o encabulamento suburbano, a lembrança intimidadora dos alagados da minha rua onde eu catava pedrinhas redondas e matinhos que faziam menção de pequenas flechas, aquelas que me supriam de máximo poder quando eu era índio e porfiava de camonhabói com os moleques da minha patota. Caminhava para um encontro definitivo, sem retorno, com uma paixão de vida toda.

Depois de dar uma volta no carrossel em cima daquele elefante dócil e orelhudo, e de me ver alucinado me breando com um palitão de algodão doce, não sei como fui parar no Manoel Pinto. Subi ao terraço como se não houvesse amanhã. Todas as portas se afastaram lascivas para o lado e o homenzinho venceu o desafio de 26 andares de escada. Pendido à gola da camisa. Todo composto na calça comprida. Desencabulado. A primeira noite. Mais um lance de escada, o terraço. E, lá de cima, Belém era toda minha.

 

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