A primeira noite de um homem
Eu
estava no terraço do Manoel Pinto e, lá de cima, Belém era toda minha. Amei
intensamente a cidade naquela noite.
Cabelos
longos de cabocla franjando o esguio corpo no leito da Alcindo Cacela (sedutor
horizonte de fuga da Pedreira) era Belém naquela noite nazarena. O largo do
arraial era o beijo doce e prolongado nos escurinhos (de canto com o corredor
de mangueiras). Era minha iniciação, a minha entrega aos caprichos e carinhos,
aos zelos sazonais, aos ritmos de dança e contemplação. Era também a anunciação
de um embrenhar-me sem regras entre canais e vielas, trilhas e varadouros com o
reggae reinando na ladeira acanhada e despintada da passagem Secundino, nem
primeira, nem alegre, nem triste. Poeta.
O
transe no rodopio do carrossel, o algodão doce melando de melado minha alma, as
bonecas de olhos de plástico descolando (misto de terror e esquisitice, na
primeira noite). O largo era uma fatia destacada do bolo multigeográfico e
sentimental. Belém. A Santa de olho no delírio ponta-cabeça que o Tira-prosa
ensejava. Pronta para acudir o ser delirante que eu era. Alguém baldeou de lá a
cá, certa vez, uma gosma translúcida e viscosa, mas não foi nesta minha
primeira vez. Soube depois. Boatos maldosos do arraial, talvez? O Tira-prosa
mudou de nome.
Minha
primeira vez rapazinho autônomo. Sem mãos dadas com mamãe. Desafiando a
paciência do cobrador do coletivo no mergulho acrobático por debaixo da
borboleta, e um tilintar de agrado na mesinha coletora das passagens. Ousado.
Mão no bolso, mão pro céu, caminhar entre as gentes, mãos erguidas pedindo
bença pras torres da Basílica. Mãos segurando firmes no lombo do elefante
orelhudo que me domava inocente rodando zonzo no carrossel.
Eu
vestia calça comprida, na minha primeira noite, porque mamãe disse que já era a
hora de andar sozinho e deixar o short só pras coisas vulgares. Tinha uns
cruzeiros novos e as moedas do cobrador. Ainda passei pelo trabalho da mamãe.
Ela me atendeu com um pastel folheado e um Guarasuco. Anotou tudo no caderninho
de ‘em a ver’ que guardada na gaveta e que registrava os débitos que ela fazia
na casa pois, ora pois-pois, o português dono da padaria não dava ponto sem nó.
Minha camisa tinha a gola esticada, o que me fazia ficar penso para um lado.
Pode ser que não, que não influenciasse meu centro de massa, mas eu me sentia
assim, penso por causa daquele balãozinho que a gola dava pro lado. E foi
assim, flutuando lateralmente, inebriado pela minha primeira noite que perdi a
pureza acreana, o medo menino, o encabulamento suburbano, a lembrança
intimidadora dos alagados da minha rua onde eu catava pedrinhas redondas e
matinhos que faziam menção de pequenas flechas, aquelas que me supriam de
máximo poder quando eu era índio e porfiava de camonhabói com os moleques da
minha patota. Caminhava para um encontro definitivo, sem retorno, com uma
paixão de vida toda.
Depois
de dar uma volta no carrossel em cima daquele elefante dócil e orelhudo, e de
me ver alucinado me breando com um palitão de algodão doce, não sei como fui
parar no Manoel Pinto. Subi ao terraço como se não houvesse amanhã. Todas as
portas se afastaram lascivas para o lado e o homenzinho venceu o desafio de 26
andares de escada. Pendido à gola da camisa. Todo composto na calça comprida.
Desencabulado. A primeira noite. Mais um lance de escada, o terraço. E, lá de
cima, Belém era toda minha.
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