No limite
O poeta
é nativo do marco da Primeira légua. Tem registros afetivos bem definidos por
aquelas bandas. Eu que não sou besta nem nada, aproveitei para tirar dúvidas
atávicas. Perguntei a ele se era justificado o temor de mamãe em não me deixar freqüentar
as cacimbas alegando que o lugar era domínio da Matinta e dos encantados. Ele
disse, ora se não! Morava pras bandas da Senador e de lá saía um caminho beirando
a mata que chegava às cacimbas. A molecada se divertia nadando por lá, mas só
até o guariba cantar. Antes de escurecer tinham que ir pra casa e em desabalada
carreira pela pista da Dr. Freitas, com os cabelos ‘arrupiando’ de medo.
Aconteceu,
no final do ano passado d’eu ir pela primeira vez na vida a uma sessão de
cinema em shopping. Programação que não esteve em momento algum na minha pauta.
Não por nada, é que, o que me apraz ainda são as salas tradicionais. As exibições
da Estação, as sessões no Líbero ou no Olympia garantiam um quê de naturalidade
e tradição aos meus programas de cinema. Recebi um convite do meu compadre, o
poeta José Miguel Alves, e me animei.
Por
causa dos cuidados com a pandemia, ele veio me pegar de carro, cedo em casa, o
que resultou em um breve passeio aqui pelos limites da primeira légua
patrimonial de Belém, marco que para nós quer dizer espaços freqüentados na
infância e adolescência. Fomos ver “Marighela”. Apreciei o filme, fiz
comparações incabíveis com o extraordinário livro do Mário Magalhães, mas,
depois, desarmado da crítica expletiva, até verti lágrimas subversivas na cena
final ao atestar que o hino nacional freqüentara grupos sociais outros, motivados
por teorias revolucionárias, e bem diferentes destes do momento, movidos pela rasa
filosofia do zap.
O
melhor da aventura, no entanto, foi passar a tarde toda explorando a interseção
Pedreira-Sacramenta com Miguel.
Dei providência
e levei o poeta para ver aquela água que escorre constantemente, de dezembro a
dezembro, ali no canto da Duque. Aleguei a possibilidade de ser o afloramento
de algum curso d’água subterrâneo que há por ali. Meu compadre José, de
conhecimento, salientou que antes, nos fundos do Lauro Sodré havia uma grande
área alagada e que se dividia em alguns canais de pequenos igarapés no sentido
da Pedreira. Com os aterros e a urbanização, pode ser, pode ser sim, este rego
constante, a água procurando caminho até fluir pelo meio-fio da Duque.
Quando
chegamos à Senador, rolou a emoção. Comentei que minha mãe tinha uma conhecida
que morava naquele trecho de fronteira com a mata e que a tínhamos como vó Ana
da Sacramenta. Criava muitos gatos, era velhinha, solitária e era atormentada
pela aeronáutica que, foi-não-foi, a ameaçava de despejo daquele pedacinho de
terra em que vivia. Era a última rua e Miguel a identificou como o traçado que
define a praça Dorothy Stang atualmente. Ali, na esquina, José localizou uma
mangueira que afirma ser a mesma em que ele catava manga antes de formar a
grade no campinho que se espremia entre casinhas humildes ali perto. Recordou a
luta do pai, a energia de minha mãe, provedores de nossas numerosas famílias,
usinas dos bons ventos que nos trouxeram até aqui a esta encruzilhada de caminhos
e tempos limitados, onde um deles nos leva a um programa jamais experimentado.
Nunca
tinha ido ao cinema no shopping. Até que um dia, me animei...mas o melhor mesmo
foi passar a tarde com meu compadre explorando a memória do marco da primeira
légua de Belém.
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