As flores de plástico não morrem
No dia
31 do ano me deu uma aperreação, dessas que dá no fim do ano quando a gente se
vê ilhado, longe do mundo afetivo, dos queridos de coração, da tia estimada.
Combinei
com a família. Faríamos uma surpresa na batida da campa. Sem muito contato,
coisa de porta, por causa dos protocolos ainda necessários de proteção à
pandemia. Só pra ver a tia de longe e deixar uma lembrancinha. Foi dia de
folga, e dia de folga pra mim, é dia de caminhar, fazer a aeróbica. Acertei com
minha patota que conjugaríamos as missões. Faríamos a caminhada, a visita
surpresa. E nos adiantamos daqui da Pedreira pelos traçados oblíquos do
Acampamento, até varar no Telégrafo. Ocorre que... choveu aquela nevinha de Natal
com um atrasozinho de uma semana.
Ouvi do
hio ao chio, do alfa ao ômega, por causa dessa minha arrumação de sair zanzando
pelo canal do Galo plena solidão do final de ano com ruas desertas e água no
cocuruto. Não dei nem as horas para as reclamações, embora, justas fossem.
Tinha um quê de infância naquela caminhada. Reinava um Alfredo dalcidiandozinho
dentro de mim naquela aventura. Mugia a vacaria na esquina da Timbó, fugia um
reguinho do olho d’água dos lateritos, silencioso afluindo ao Galo pelas
entranhas da Vileta, varriam as vassouras na Alvorada, lá em cima na Vila
Isabel com Rosa Moreira.
Minha
tia faz parte daquela legião de mães heroínas, que cuidam dos seus e dos
outros. Houve de me acolher, me cuidar, me prover com um bico de pão todos os
dias para a merenda da escola e o da passagem no Nova-Marambaia-Telégrafo
também. Como? Me digam, como uma chuvinha doce, as ruas desertas, a direção
incerta nos eixos do Acampamento me impediriam de fazer um mimo, mostrar meu
afeto, meu carinho por minha tia? Mas quando, já!
A
lembrancinha que escolhemos foi um pequeno vaso de flores. Houve uma trava
operacional pra atravessar a Pedreira toda com um vaso na mão. Preciso de todos
os componentes mecânicos funcionando na minha caminhada, tenho que mobilizar o
sistema cardiovascular, ativar a respiração, usar as bombas de irrigação
presentes na dinâmica corporal. Não podia ficar com os braços ocupados
carregando o vaso. Veio a idéia de acomodá-lo às costas numa mochila. Beleza.
Estava livre para metabolizar o O2.
Ocorre
que aquela mochila nas costas animou a lembrança das flores de plástico. E era
desse jeitinho mesmo.
Mamãe
lutou muito para nos sustentar. E a atividade que me vem como a mais antiga e
provedora de nossa subsistência era a confecção de flores de plástico. Eu mesmo
fui várias vezes à Lobrás, à Grisólia comprar as peças. Prontas, a venda também
era comigo. Mamãe levava fé. Era produto bom, afinal, as flores de plástico não
morrem. Incentivava. Me deixava na entrada da vila com a recomendação de que eu
expusesse as flores, fizesse um arranjo por fora da sacola para que todos
vissem. Era dobrar a esquina e eu empurrava tudo pra dentro. Morria de vergonha
de ser vendedor de rua. Mas tinha que vender. Optei por bater de porta em
porta. Oferecia batonzinho da Avon, Cristian Gray, perfumes e flores de
plástico. Mamãe sabia que eu escondia as flores. Uma vez, logo na saída da
vila, um homem me parou e comprou tudo. Pra quê, ela viu e cravou: ‘não te
disse, tem que mostrar’.
Na
caminhada até a casa da tia, neste fim de ano, pus as flores na mochila e
fechei o zíper. Ninguém sabia que eu carregava flores ali. A aeróbica esteve
on. Mas olha, reinei em bater de porta em porta pelos traçados do Acampamento.
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