Margarida
Não sei
do sucedido que causou aquele alagamento no canal aberto para receber os tubos.
Virou piscina da molecada. Era a época de instalação da rede de esgoto naquele
circulado que envolvia Marco e Pedreira. A Mauriti tinha rasgos imensos
salteados a cada quarteirão e bem na frente da vila em que eu morava tinha o
buraco com água jorrando aos emboléu. O custo era a turma chegar do
intermediário, ajeitar uma merenda e logo, logo, mergulhar no buraco. Lá pelas
tres’orinhas, quando os operários chegavam, a animação era grande. Moleque
pulando de cabeça, o mais péssimo brincando de afogar o mais quietinho, outros
só nas braçadas de um lado a outro. O carão vinha sem regra: “saiam daí, seus
filhos de deus, seus filhos duma...”. Era o capataz da obra que engatava uma
carreira na nossa direção com uma varinha pra lambar na costa dos renitentes.
Mais
tarde, embaixo do pé de acácia, a gente com as pernas gris de tuíra, tentava
entender o extremismo do capataz que dava um ralho envolvendo o pai eterno, e
ao mesmo tempo nossa mãe, no caso, com a mesma ocupação de Maria Madalena. Eu,
heim, homem destrambelhado aquele.
Em todo
o estirão da 25 de setembro, havia o grande rasgo. Eu, que era da onda, da
traquinagem, e que estudava pra’quelas bandas, quando me invocava, mergulhava
naquele subterrâneo à altura da Lomas e só saia na frente da escola. Era uma
aventura. Dava arrepio, uma desconfiança, mas era bom que só aquele sumiço
terra à dentro.
Na
maioria das vezes íamos em dois, eu e Tato. Ele, pariceiro de rua e de
caminhadas pra escola.
Não me
agradava muito da companhia.Tínhamos algumas diferenças. Era da bandalha, do
ramo da malinação. Conservava costumes bizarros. Já beirando os 15 anos, ainda
saía de dentro da casa dele, do puro dentro de casa, pra mijar na rua, na beira
da sarjeta.
Tato
tinha um comportamento que exigia da nossa patota, um pé mais atrás. Arrumava
confusão, inventava molecagem pesada no escurinho da noite, como riscar carros
dos vizinhos, assustar mulheres desacompanhadas arremedando uma cobra com réstia
de cebola debulhada, ou simplesmente jogar pedra a esmo, atingindo telhados
próximos. Inúmeras vezes fui dormir com o couro quente por paga das aprontações
de Tato.
À
noite, quando a gente se aprontava e formava um grupinho para uma prosa leve na
frente do Paraíso, ele procurava destaque. Atentava tanto a mulher da
bilheteria, que ela não agüentava, andava até o portãozinho e o deixava entrar.
As conquistas o faziam sentir-se poderoso, irresistível. Era do calibre dele.
Mesmo fazendo o bem, parecia que ele fazia o mal. Alguém precisava ir pro Ponto
Socorro, com um golpe no pé, era o primeiro a se apresentar com uma bicicleta
para levar o acidentado. Se tinha uma subscrição era ele que levava o papel de
casa em casa. No entanto, o vi partir o beiço de um menino com um soco lá no Areal
e depois esfregar a cara do pequeno numa poça de água
imunda por causa de uma rixa à toa na pelada do sábado, e ainda outra vez, o
presenciei quebrar um garrafão de cinco litros de vinho e espalhar os cacos em
todo o gramado da Duque só porque a grade dele perdeu a vez.
E era
com ele que eu me embrenhava pelos corredores subterrâneos da rede em obras.
Era a década de 70, os anos de chumbo. Quando chegávamos à escola e formávamos
para o hino, ele era um menino patriota, com todo entusiasmo, com todo o garbo,
com toda a pose. Era o primeiro da fila. Sentido, mão no peito a entoar “do que
a terra, margarida”.
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