sábado, 4 de dezembro de 2021

crônica da semana - a esquina do céu

 A esquina do céu (mil anos)

A minha janela dá pra’queles rumos da baía, lá pra donde o sol se põe, o dito lado oeste do globo.

Na madrugada, no ritual que antecede a minha saída para o trabalho, me entrego a uns instantes de silêncio, soprando o quentinho do café que eu mesmo passo, e me permito apreciar o longe naquele inevitável instante em que o céu é tragado pelo claro do dia.

Da minha janela, xícara na mão, aqui, acolá um golinho de café, o fumegado da fervura recente e o cheirinho bom, ainda temperado pela umidade doce da madrugada, procuro um cantinho no céu, uma esquina um ponto de encontro e reflito, fantasio, faço perguntas para o tempo e para os vagos do horizonte. De onde viemos, para onde vamos?

Descendo no horizonte, despedindo-se da noite, as Três Marias me olham e me brilham respostas. Nosso partir e nosso chegar é exato nesta esquina, é este o combinadíssimo ponto de encontro. Aquelas estrelinhas alinhadas, que todos nós conhecemos fazem parte de uma constelação que todo ano, a essa hora, no mesmo tempo em que realizo o ritual que antecede a minha ida para o trabalho, mergulha no horizonte ali pras bandas da baía, o dito oeste. E é tão certo este evento, tão constante esta interação cósmica, que se daqui a mil anos, se eu ainda estiver praticando a mesma rotina, lá estarão, no início de dezembro, as Três Marias, só me tirando bem de longe, atentas às minhas reflexões e sumindo, desaparecendo na luz tangente.

Esta coincidência, reconhecemos como a passagem de 365 dias. Contamos um ano a cada vez que completamos um ciclo ao redor do sol, e no caso aqui do meu cafezinho na madruga, reconheço também o espaço. Este ponto de encontro em que ocorre o mergulho das Três Marias no mar do dia, com a folhinha já beirando o mês de dezembro.

Será que estarei aqui passados mil anos?

Este ciclo contado no espaço é a volta que a Terra dá ao redor do sol. Novecentos e tantos milhões de quilômetros a serem percorridos desde agora, até ano que vem. Nesta trajetória percorremos o zodíaco, o caminho dos animais. Cada mês uma imagem nova na minha janela, de manhãzinha. Agora, iniciando o mês, ao pegado das três estrelinhas, desce no horizonte, a constelação de Touro. Mais um mês e, Gêmeos. Depois, Caranguejo, na sequência Leão e assim por adiante... Até chegar dezembro de novo e...

Ano passado, me arrumei todo. A curva da Covid estava em queda, havia uma mobilização de vários setores para a volta da vida dita normal. Soprei meu cafezinho na janela, perscrutei o céu. Não vi estrelas. Minha avaliação médica não indicou a volta ao trabalho presencial. Pressão inquieta, por acolá, ainda por ser controlada, acho que por causa do sofrimento herdado da primeira onda. Dois meses depois a curva subiu de forma tal que pensei que não iria parar mais. Houve aquele período de calamidade em março quando o país registrou mais de 4.000 mortes por dia.

A sistólica descontrolada, penso que me salvou. Tenho a impressão que se estivesse voltado ao presencial ano passado, eu teria morrido de medo, de susto ou da bicha mesmo.

Na segunda, vou esfriar meu cafezinho ali na janela e agradecer aos dezembros, aos encontros que temos nesta esquina certa e inevitável. Vou revisitar os longes, as reflexões. Vou ficar só tirando as Três Marias e vou dar um até logo quando não mais me responderem com um brilho simpático. E vou mergulhar mais um ciclo neste caminho dos animais. Vivo.

Será que estarei aqui ainda que passados mil anos?

 

Um comentário:


  1. ...
    Daqui a mil anos?
    Tu não estarás aqui.
    Mas o texto...
    Bem que ele merece...!!!

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