A esquina do céu (mil anos)
A minha
janela dá pra’queles rumos da baía, lá pra donde o sol se põe, o dito lado oeste
do globo.
Na
madrugada, no ritual que antecede a minha saída para o trabalho, me entrego a
uns instantes de silêncio, soprando o quentinho do café que eu mesmo passo, e
me permito apreciar o longe naquele inevitável instante em que o céu é tragado
pelo claro do dia.
Da
minha janela, xícara na mão, aqui, acolá um golinho de café, o fumegado da
fervura recente e o cheirinho bom, ainda temperado pela umidade doce da
madrugada, procuro um cantinho no céu, uma esquina um ponto de encontro e
reflito, fantasio, faço perguntas para o tempo e para os vagos do horizonte. De
onde viemos, para onde vamos?
Descendo
no horizonte, despedindo-se da noite, as Três Marias me olham e me brilham
respostas. Nosso partir e nosso chegar é exato nesta esquina, é este o combinadíssimo
ponto de encontro. Aquelas estrelinhas alinhadas, que todos nós conhecemos
fazem parte de uma constelação que todo ano, a essa hora, no mesmo tempo em que
realizo o ritual que antecede a minha ida para o trabalho, mergulha no
horizonte ali pras bandas da baía, o dito oeste. E é tão certo este evento, tão
constante esta interação cósmica, que se daqui a mil anos, se eu ainda estiver
praticando a mesma rotina, lá estarão, no início de dezembro, as Três Marias, só
me tirando bem de longe, atentas às minhas reflexões e sumindo, desaparecendo
na luz tangente.
Esta
coincidência, reconhecemos como a passagem de 365 dias. Contamos um ano a cada
vez que completamos um ciclo ao redor do sol, e no caso aqui do meu cafezinho
na madruga, reconheço também o espaço. Este ponto de encontro em que ocorre o
mergulho das Três Marias no mar do dia, com a folhinha já beirando o mês de
dezembro.
Será
que estarei aqui passados mil anos?
Este
ciclo contado no espaço é a volta que a Terra dá ao redor do sol. Novecentos e
tantos milhões de quilômetros a serem percorridos desde agora, até ano que vem.
Nesta trajetória percorremos o zodíaco, o caminho dos animais. Cada mês uma
imagem nova na minha janela, de manhãzinha. Agora, iniciando o mês, ao pegado
das três estrelinhas, desce no horizonte, a constelação de Touro. Mais um mês
e, Gêmeos. Depois, Caranguejo, na sequência Leão e assim por adiante... Até
chegar dezembro de novo e...
Ano
passado, me arrumei todo. A curva da Covid estava em queda, havia uma
mobilização de vários setores para a volta da vida dita normal. Soprei meu
cafezinho na janela, perscrutei o céu. Não vi estrelas. Minha avaliação médica
não indicou a volta ao trabalho presencial. Pressão inquieta, por acolá, ainda
por ser controlada, acho que por causa do sofrimento herdado da primeira onda.
Dois meses depois a curva subiu de forma tal que pensei que não iria parar
mais. Houve aquele período de calamidade em março quando o país registrou mais
de 4.000 mortes por dia.
A
sistólica descontrolada, penso que me salvou. Tenho a impressão que se
estivesse voltado ao presencial ano passado, eu teria morrido de medo, de susto
ou da bicha mesmo.
Na
segunda, vou esfriar meu cafezinho ali na janela e agradecer aos dezembros, aos
encontros que temos nesta esquina certa e inevitável. Vou revisitar os longes,
as reflexões. Vou ficar só tirando as Três Marias e vou dar um até logo quando
não mais me responderem com um brilho simpático. E vou mergulhar mais um ciclo
neste caminho dos animais. Vivo.
Será
que estarei aqui ainda que passados mil anos?
ResponderExcluir...
Daqui a mil anos?
Tu não estarás aqui.
Mas o texto...
Bem que ele merece...!!!