A Gata encantada
De
mundiar, cobra grande sucuri, mundia. Jibóia enrolada que se desenrola na
frente da gente e ganha rumo pela mata, também. Jade, até que desconfiava. Não
tinha certeza. Agora tenho. Mundia.
A gata
aqui de casa, no último domingo, me pôs doidinho, de zunhar as paredes, por
causa de um encantamento que inventou. Sumiu, no acanhado vão do lar.
Desapareceu sem deixar pista.
Para
mim ela é a Jade. Ganhou este nome pouco antes da pandemia. Não achava legal,
tanto tempo com a gente, ser parte da comunidade e não ter um nome formalizado.
Minha iniciativa não foi abonada pela família. Pra todo mundo aqui ela ainda é só
a Gata.
Apareceu
em nossa vida, se bem contados, pra mais de 15 anos atrás. Já chegou soberana.
Olhos azuis, pelagem macia e farta, de uma cor creme-amarelada-pálida. Dengosa
e amiga. Era vezeira na vilinha em que a gente morava. Marcava território na
casa de um, mais com pouco, na casa de outro. Tinha o quintal como universo
absoluto e certo. Escalava o jambeiro, equilibrava-se no muro suburbano e
bambo, perseguia pequenos insetos e era o terror da passarinhada. Gerou
filhotes que logo achavam lar. Meu compadre, o poeta José Miguel Alves, adotou o
Diego, um malhadinho aventureiro sem termo, e o levou para as aventuras no
condado do Maguari.
Pelo
que vinha e pelo que ia, foi estabelecendo preferências e acabou se misturando
conosco, que morávamos na casa dos fundos. Nem contamos conversa e colocamos
mais um pratinho (de ração) na mesa. O bom pai ajudou e compramos um aparelho
de ar condicionado. Foi a conta para que nosso amor se garantisse na eternidade.
Era só ouvir o bip, que Gata subia até nosso quarto e procurava um tapetinho, a
fofa almofada ou mesmo o cantinho da parede para se aninhar naquele friozinho.
Quando não, se emboletava na cama, com a gente mesmo. Nunca pensei que fosse
dada a encantamentos.
Minto,
desconfiei quando, este ano, mudamos de casa. Estranhou. Miou miados
pranteados. Nos deixou duas noites sem dormir, a bom ninar a bichinha pelos
cantos da casa, no sofá, no chão do quarto. E, o sinal que maldei sobrenatural:
nos dois dias de tensão, as pupilas de Jade se mantiveram dilatadas. Fosse no
claro do dia, ou na escuridão da noite, os olhos eram profundos, infinitos,
ausentes. No terceiro dia tornou dos abissais estranhamentos e ressurgiu
querida e amiga, bem pertinho de nós, cheia de carinhos e afetos. Com aqueles
olhos vivos, azuis, qual petecas colombianas.
Domingo
é meu dia de faxina em casa. No último, todo mundo saiu e eu me danei nos
vasculhos e vassouradas. Quando dei a aspergir detergente no piso, coincidiu de
Gata deixar o pequeno alpendre que dá pra rua e voltar para a sala. Na certa,
se incomodou com o cheiro, ou algum pingo atingiu seus pelos sedosos. Passou
por mim e virou em direção aos quartos. Adiantei a tarefa. Lustrei, passei
pano, enxuguei, quando dei fé, quedê Jade? Fui atrás. Nos quartos, no vão da
janela. Voltei pra sala, cozinha, alpendre. Nada. A casa que moramos é pequena,
duas corridas de vista define tudo que tem volume ou se move. Olhei embaixo das
camas, atrás do guarda-roupa. Dentro dos armários. Nem sinal de Gata. Parei
todas as tarefas. Quis ligar para a família, partilhar minha angústia. Não
segurei o choro.
Depois
de um tempo de desconsolo, resolvi revisitar todos os locais. Encontrei Jade
embaixo da cama, lugar que eu já havia procurado pelos menos duas vezes.
A Gata,
até que desconfiava. Não tinha certeza. Agora tenho. Mundia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário