sábado, 20 de novembro de 2021

crônica da semana- a cidade é assim

 A cidade é assim

Quando as torres do mercado do Ver-o-Peso se mostraram em estilo  art noveau  no horizonte, eu, molequinho das brenhas do Acre senti um pressentimento, uma coisa, uma aproximação de almas.

Foi bater o pé no galpão Mosqueiro-Soure e me senti em casa. A cidade entrou em mim com todos os seus temores e prazeres e eu entrei na cidade querendo ser semente, querendo germinar.

Belém para mim é liberdade e amor. Céu outro, brisa outra, de través, flanco oriental da Amazônia, vento nordeste, clima que subverte. Sopro de revolução que converte à fé mundana e à desconfiança sagrada. Um rio de verdade e intenções. Guajará, Guamá, rio-mar de desafios diários. De conquistas valentes, covardes frustrações. E calor. Muito calor.

Ando de prosa com esta cidade desde que tempo. Desde que desembarquei nas docas do Ver-o-Peso, nos damos a boas conversas. Sem faltas ou transbordamentos. Sem reservas nem afetações. Tudo na mais pura sinceridade. Não nos permitimos enganos.

Por essas intimidades e pelo desvelo que nos oferecemos, entendo. Entendo que os tempos são outros.

Já dei de tirar cismas e curiosidades sobre esta cidade. Virei e mexi cada cantinho e a qualquer hora. Ocorreu d’eu me perder pelas ruas oblíquas da Cidade Velha, e de me achar no emaranhado de canais na baixa da Radional. Sumi, certa vez pelas vielas do Jurunas e só me foram achar dias depois com um sorriso deste tamanho no rosto. Entre Telégrafo e Sacramenta, dei aula de Desenho. Tracei fiações semirretas de canções e triângulos retângulos de dança e ritmo. Pras bandas do Curió, assobiei melodias de encantamento. Em Terra Firme mergulhei Iara-Guamá no Tucunduba e boiei boto-Tucunduba no Guamá. Meu cantinho, indo de samba e vindo de amor é a Pedreira.

A cidade nunca fez zanga comigo. Vez alguma me machucou ou me maldisse. Caí em alguns buracos traiçoeiros, reinei com gangues e tribos, entojei antros de perdição. Amei antros de perdição. Reinei ódio e admirei de paixão. Reconheço reveses. Porém, penso que nos equilibramos eu e minha Belém. Na tristeza, na alegria, na pobreza, na riqueza, na dor... em companhias compulsórias e também em sagrada solidão.

Nunca tive medo de Belém.

O recolhimento e os novos costumes que nos são impostos pelo medo invencível do vírus Corona, desandaram a conversa boa que tenho com a cidade. E agora sinto um tiquinho de medo, um receio prudente dos repentes que esta cidade inspira.

Um medo novo. Uma atenção especial, Um detector de comportamento sempre ligado.

Voltei a ser rueiro após a segunda dose da vacina. Não aquele batedor de antes. Um rueiro bem mais comedido, limitado a caminhadas terapêuticas no bairro. Montado na equipagem esportiva, máscara, vidrinho de álcool e roteiro pré-definido.

Eis que na última caminhada, cruzei com um cidadão sem máscara e a poucos metros de mim, ele espirrou e assoou o nariz. Sequer cometeu aquele sacrilégio de limpar a mão no short. Passou por mim com a mão breada. Mais à frente, entrou num café e com aquele filme de assoado nos dedos, andou entre as mesas sem cerimônia, estendeu a mão, cumprimentou algumas pessoas (que depois levaram a mão aos seus lanchinhos). Acomodou-se no balcão, manuseou objetos. Fez o pedido. Eu, incrédulo da razão daquilo tudo, do outro lado da rua, só acompanhando aquela presepada e perdendo a vontade de completar o meu circuito.

E antes que me vejam acometido de uma crise de nojinho, avivo os alertas e as lembranças. A pandemia ainda não acabou. E Belém nunca me fez zanga.

 

 

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