A cidade é assim
Quando
as torres do
mercado do Ver-o-Peso se mostraram em estilo art noveau no horizonte, eu, molequinho das brenhas do Acre senti um
pressentimento, uma coisa, uma aproximação de almas.
Foi
bater o pé no galpão Mosqueiro-Soure e me senti em casa. A cidade entrou em mim
com todos os seus temores e prazeres e eu entrei na cidade querendo ser
semente, querendo germinar.
Belém para
mim é liberdade e amor. Céu outro, brisa outra, de través, flanco oriental da
Amazônia, vento nordeste, clima que subverte. Sopro de revolução que converte à
fé mundana e à desconfiança sagrada. Um rio de verdade e intenções. Guajará,
Guamá, rio-mar de desafios diários. De conquistas valentes, covardes
frustrações. E calor. Muito calor.
Ando de
prosa com esta cidade desde que tempo. Desde que desembarquei nas docas do
Ver-o-Peso, nos damos a boas conversas. Sem faltas ou transbordamentos. Sem
reservas nem afetações. Tudo na mais pura sinceridade. Não nos permitimos
enganos.
Por
essas intimidades e pelo desvelo que nos oferecemos, entendo. Entendo que os
tempos são outros.
Já dei
de tirar cismas e curiosidades sobre esta cidade. Virei e mexi cada cantinho e
a qualquer hora. Ocorreu d’eu me perder pelas ruas oblíquas da Cidade Velha, e
de me achar no emaranhado de canais na baixa da Radional. Sumi, certa vez pelas
vielas do Jurunas e só me foram achar dias depois com um sorriso deste tamanho
no rosto. Entre Telégrafo e Sacramenta, dei aula de Desenho. Tracei fiações
semirretas de canções e triângulos retângulos de dança e ritmo. Pras bandas do
Curió, assobiei melodias de encantamento. Em Terra Firme mergulhei Iara-Guamá
no Tucunduba e boiei boto-Tucunduba no Guamá. Meu cantinho, indo de samba e
vindo de amor é a Pedreira.
A cidade
nunca fez zanga comigo. Vez alguma me machucou ou me maldisse. Caí em alguns
buracos traiçoeiros, reinei com gangues e tribos, entojei antros de perdição.
Amei antros de perdição. Reinei ódio e admirei de paixão. Reconheço reveses. Porém,
penso que nos equilibramos eu e minha Belém. Na tristeza, na alegria, na
pobreza, na riqueza, na dor... em companhias compulsórias e também em sagrada
solidão.
Nunca
tive medo de Belém.
O
recolhimento e os novos costumes que nos são impostos pelo medo invencível do
vírus Corona, desandaram a conversa boa que tenho com a cidade. E agora sinto
um tiquinho de medo, um receio prudente dos repentes que esta cidade inspira.
Um medo
novo. Uma atenção especial, Um detector de comportamento sempre ligado.
Voltei
a ser rueiro após a segunda dose da vacina. Não aquele batedor de antes. Um
rueiro bem mais comedido, limitado a caminhadas terapêuticas no bairro. Montado
na equipagem esportiva, máscara, vidrinho de álcool e roteiro pré-definido.
Eis que
na última caminhada, cruzei com um cidadão sem máscara e a poucos metros de
mim, ele espirrou e assoou o nariz. Sequer cometeu aquele sacrilégio de limpar
a mão no short. Passou por mim com a mão breada. Mais à frente, entrou num café
e com aquele filme de assoado nos dedos, andou entre as mesas sem cerimônia,
estendeu a mão, cumprimentou algumas pessoas (que depois levaram a mão aos seus
lanchinhos). Acomodou-se no balcão, manuseou objetos. Fez o pedido. Eu,
incrédulo da razão daquilo tudo, do outro lado da rua, só acompanhando aquela
presepada e perdendo a vontade de completar o meu circuito.
E antes
que me vejam acometido de uma crise de nojinho, avivo os alertas e as
lembranças. A pandemia ainda não acabou. E Belém nunca me fez zanga.
Nenhum comentário:
Postar um comentário