Traga o litro, traga o litro!
Mamãe
tinha dois sonhos, dois anseios mundanos. Um era ter uma TV colorida. O outro
era comprar um prosdócimo.
A
televisão, consegui atender com os proventos de uma indenização que recebi nos
primeiros anos de Barcarena. Já o prosdócimo ficou em a ver, perdido nos
enredados da metonímia.
Os
sonhos se diluíram na poeira do tempo, já o discurso que desafia a semântica,
até um dia desses se concretizava pelas ruas de Belém. E se avivava no pregão: “traga
o litro, traga o litro”. O chamamento era para que as pessoas aparecessem com
um recipiente para adquirir, a preços bem populares, um tipo de água sanitária
caseira, porém, anunciada como a mais famosa, aquela que era a boa da época.
Pelo uso, pela exclusividade, o costume, a tradição, e pela disputa ainda
acanhada entre os produtos industrializados, antigamente era comum a gente
ligar a marca do produto, ao próprio produto. A este fenômeno recorrente na
língua dá-se o nome de metonímia.
E é só lembrar
da sétima série que a gente topa com um encarreirado de exemplos, quando se
substitui a parte pelo todo, o autor pela obra, o continente pelo conteúdo, e
no caso do Prosdócimo, o inventor pelo invento. Trata-se, no caso dos anseios
da mamãe, de uma geladeira onde tudo é congelador (hoje conhecida como freezer).
E que muito a ajudaria nas vendas que realizava para nos garantir a todos, o
sustento.
Eu,
aqui-ali, faço uso da metonímia. De fato, não conheço outro artefato capaz de
me barbear, que não uma delgada e amoladinha gilé.
E não
precisa ter boa cabeça (olha, olha!) para buscar umas quantas substituições que
fazemos no passar dos dias. Cada qual tem a metonímia da hora para chamar de
sua. Eu, por exemplo, sou um tipo que chama o sono na companhia de Machado de
Assis e acorda com o Chico Buarque alarmando um ser tomado de preguicinha para o corre do dia.
Calhou
d’eu, agora na batida da campa das minhas lidas de operário, pensando
seriamente em pendurar o capacete e o par de botas, catar aqui, acolá, uma
ocupação para me aviar no futuro de aposentado. Longe de mim, a pretensão, mas
pensei em garimpar entre os meus herdados da mamãe, um tiquinho do talento dela
para o negócio da venda (e para a arte de prover ardorosamente um lar).
Analisando
o mercado, o entorno e os vãos da Pedreira, me vi avizinhado de um portentoso condomínio.
Especulo que se fizer uma boa propaganda, pedir pra deixar na janela meus
prospectos listando e descrevendo os produtos da minha lavra, posso ter sucesso.
Meu povo merece comodidade. No pé do meu panfleto, ainda vou ratificar “faz-se
entrega em domicílio”. Era assim que funcionava quando, certa vez morei num
condomínio popular, lá na Augusto Montenegro. Todo dia tinha uns reclames
impressos debaixo da minha porta. Se me fosse do agrado, nem saía da Nova
Belém, tudo o que eu precisava vinha ao pé da minha rede. Era só discar pro
número do papelzinho. E eu podia ficar só no embalo, só na caté, final de
semana só charlando no recreio. Ninguém tá a fim de sair nesse solão que vira
chuva forte em Belém de uma hora pra outra, em tempo de pegar uma constipação,
só pra comprar um isso, um aquilo farto e fácil. Ah, sim, vou diversificar meus
produtos. Meu empreendimento vai ser tipo um armarinho das antigas. Vai ter da
agulha ao pão de batata.
De vez
em quando vou alugar uma bike-som e sair ao largo, alardeando. “traga o litro,
traga o litro”.
Não vou
ter um Prosdócimo. Vou ficar em a ver. A marca foi extinta.
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