O casquinho de muçuã, a farofa e o purgatório
Queria
tanto saber das coisas do Acre e o que acabei conhecendo, pelo Leandro
Tocantins, foi um pouquinho mais da história de Belém.
Teve
uma época que eu fiquei num pé e noutro para chegar às obras do escritor paraense,
nascido no largo da Sé, em Belém, e criado às margens do rio Tarauacá, no Acre.
Era a fase da cuíra pra saber das coisas e do povo da seringa. A história, os
costumes, os primeiros seringueiros a chegar por lá. O caso da independência. As
peripécias do Galvês, eu já sabia pelo romance do manauara Márcio Souza.
Queria, porém, os fatos cravados e dados. Sem os pitacos romanceados. Um
professor meu que era de Cruzeiro do Sul indicou Tocantins como referência na
historiografia do Acre.
Não tive
sucesso, naquela fase de precisão. Consegui, não me lembro onde, um trabalho
acadêmico muito esclarecedor sobre a ocupação do Acre e foi a partir dele que
escrevi, muito oportunamente, uma crônica em meio àquela arenga que tivemos com
o presidente da Bolívia, lembram? Foi quando o Evo Morales inticou com a gente
dizendo que o Acre havia sido trocado com a Bolívia, por um cavalo.
E eis
que estava Bembelebém, viva Belém, numa manhã de domingo, no gozo do lar quando
meu sobrinho me chega com os mimos. Havia herdado uns exemplares antigos da
biblioteca da família e lembrou de mim. Pensou se eu não queria ficar com
alguns. E me trouxe as raridades. Uma coletânea memorável de Bruno de Menezes e
uma publicação de 1963 de “Santa Maria do Belém do Grão Pará”, adivinha de
quem?
Pois é,
do cujo. Leandro Tocantins conta tintim por tintim fatos marcantes da história
de Belém. E, o que me chama muita atenção, numa linguagem quase que inocente,
desprovida de patrulhas. Apresenta personagens que retratam o poder religioso
na figura do Frei Caetano, passando pelo poder político representado por
Antônio Lemos. Tem um chamego por Landi indisfarçável que reina creditar ao
arquiteto bolonhês, com o mesmo fervor, a criação de obras que vão do mais
simples ferrolho do mais escondido casario marginal da Cidade Velha ao desenho
delicado da capela de São João Batista. Descreve logradouros, ruas, praças, as
festividades, as personalidades, as campanhas religiosas. Dá a receita do
tacacá, de banhos de cheiro e sem a menor tremedeira ecológica indica pratos
que não podem faltar na mesa do paraense em épocas festivas, em especial o
casquinho de muçuã (destaque para a dramática narrativa que faz do “preparo
desta maravilhosa iguaria: as tartaruguinhas são postas vivas no panelão de
água fervente com sal para obter o cozimento”) e o paxicá (guisado de fígado de
tartaruga). Sentencia que não conhece outro jeito de tomar tacacá que não seja
na cuia-pitinga ou mesmo na outra, a santarena.
É
objetivo e surpreende ao explicar o sentido de cada um dos carros que compõem o
cortejo do Círio ou quando desvenda a razão das gravuras inscritas nos quadrantes
que formam o Brazão d’Armas de Belém, aquele desenho que a gente vê na lateral
dos ônibus.
É um
livro robusto, tem cheiro de velhinho, por isso o li do início ao fim,
protegido pela mesma máscara que me protege dos negacionistas e do vírus
maldito. Tem a minha idade e trata-se do segundo volume.
É uma leitura cativante, temperada de cores e formas, e como já disse, de uma inocência colada a seu tempo, pois que desde que me entendo por gente paraense, tenho pra mim que é pecado mortal comer muçuã. Farofa de tartaruga no casco então, dá no mínimo, uma eternidade de purgatório.
Sodré, uma das feras de nossa crônica. Conversa escrevedo-se. Bravo
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