sábado, 11 de setembro de 2021

crônica da semana - não vai perder!

 Não vai perder! (amigos sumidos assim)

Eu já tinha decidido que só faria minhas caminhadas aeróbicas pelo canteiro da Marquês em trecho inteiriço. Naquele estirão que não é cortado por nenhuma rua. É que a turma motorizada, os choferes donos da presepada e da rua toda, não estão nem aí. A galera não respeita. Faz conversão irregular, retorno canhoto. Não dá trela pra quem está caminhando ou de bicicleta.

Acontece que nesta última sessão de sábado, tive que encarar.

O dia tava todo conforme o combinado. A caminhada começou um pouco mais tarde porque pretendia pegar umas informações de um amigo há muito longe e sem notícias. Queria passar na casa da família dele aqui na Pedreira num horário que já estivessem acordados. Mais tarde, mais Trânsito.

É meu amigo de maior data. Nos conhecemos na Aparecida. Alfa, Primeira atrasada, Primeira adiantada. Marcha no dia da raça. Aulas com as professoras Raposo, Ivani, Maria de Jesus, Nazaré Cruz, Iolanda; o bêábá suave, o Ivo viu a uva. As cantigas protocolares “Boa tarde visita como vai/a nossa amizade nunca sai/faremos o possível/ para sermos bons amigos/ boa tarde, visita como vai”. Um Primário inesquecível. Missa com padre Geraldo e passeios no dia das crianças.

Moramos perto. Éramos adversários em grades nos mínimos planos de piçarra que se formavam na Marquês para a pelada do final de tarde. Cada qual dando sangue pela sua rua. A escola deu um tempo em nossa relação. Não estudei no Justo, como meio mundo de moleques da Pedreira. Mais adiante retomamos nossa amizade, nas aulas aterrorizantes de Matemática na Escola Técnica e construímos juntos um pensamento e uma conduta política em saudáveis diálogos tomando sorvete nas calçadas da Duque. Nossa cabeça dava Pi voltas sobre dois enes nessa época. A tensão era uma constante e o futuro uma incógnita ante um regime que ainda teimava dar razões, proporções e regras duras ao Brasil. Nos conjuntos verdades que apareceram durante a abertura política, nos batíamos enfrentando os tomara-que-chova minados de praças, em batalhas renhidas pela meia-passagem. O tempo passou. Constituímos família, descruzamos rumos, rareamos os encontros.

Por últimos, tínhamos um encontro marcado anualmente. Podíamos passar todo o ano sem nos ver, cada qual com o seu cada qual de viver, mas quando dava junho, estávamos lá ao lado do anfiteatro da Praça da República nos completando um ao outro, atualizando a lida, partilhando as mazelas do coração e arriscando um coro ou um passinho da coreografia, em meio à folia do Pavulagem.

Até que veio a pandemia e a treva política que nos envolve. Meu amigo sumiu.

Desde que tomei a segunda dose, pus na cabeça ir atrás de notícias. E deu tudo nos conformes. Falei com a cunhada dele. Ela muito prestativa, me deu caneta, papel. Anotei todos os telefones de contato dele e de pessoas próximas, e ainda me recomendou: “não vai perder! Aí tem tudo que precisas”. Continuei a caminhada. Uma paradinha para atravessar a Alferes Costa, e se deu o sobressalto. Quando o sinal da travessa fechou, reiniciei o trajeto. No meio da travessia, dois motoqueiros cidadãos do bem ostentando bandeirinhas do Brasil no guidão das motos, em manobra irregular dobraram na Alferes. Frearam bruscamente bem pertinho já, e ficaram acelerando. Tive que dar aquele velho pique para não passarem por cima de mim. Na agonia, nem percebi que larguei o papelzinho com os telefones para trás. Cheguei em casa sem.

 

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