Não vai perder! (amigos sumidos assim)
Eu já
tinha decidido que só faria minhas caminhadas aeróbicas pelo canteiro da
Marquês em trecho inteiriço. Naquele estirão que não é cortado por nenhuma rua.
É que a turma motorizada, os choferes donos da presepada e da rua toda, não estão
nem aí. A galera não respeita. Faz conversão irregular, retorno canhoto. Não dá
trela pra quem está caminhando ou de bicicleta.
Acontece
que nesta última sessão de sábado, tive que encarar.
O dia
tava todo conforme o combinado. A caminhada começou um pouco mais tarde porque
pretendia pegar umas informações de um amigo há muito longe e sem notícias. Queria
passar na casa da família dele aqui na Pedreira num horário que já estivessem
acordados. Mais tarde, mais Trânsito.
É meu
amigo de maior data. Nos conhecemos na Aparecida. Alfa, Primeira atrasada,
Primeira adiantada. Marcha no dia da raça. Aulas com as professoras Raposo,
Ivani, Maria de Jesus, Nazaré Cruz, Iolanda; o bêábá suave, o Ivo viu a uva. As
cantigas protocolares “Boa tarde visita como vai/a nossa amizade nunca
sai/faremos o possível/ para sermos bons amigos/ boa tarde, visita como vai”.
Um Primário inesquecível. Missa com padre Geraldo e passeios no dia das
crianças.
Moramos
perto. Éramos adversários em grades nos mínimos planos de piçarra que se
formavam na Marquês para a pelada do final de tarde. Cada qual dando sangue
pela sua rua. A escola deu um tempo em nossa relação. Não estudei no Justo,
como meio mundo de moleques da Pedreira. Mais adiante retomamos nossa amizade,
nas aulas aterrorizantes de Matemática na Escola Técnica e construímos juntos
um pensamento e uma conduta política em saudáveis diálogos tomando sorvete nas
calçadas da Duque. Nossa cabeça dava Pi voltas sobre dois enes nessa época. A
tensão era uma constante e o futuro uma incógnita ante um regime que ainda
teimava dar razões, proporções e regras duras ao Brasil. Nos conjuntos verdades
que apareceram durante a abertura política, nos batíamos enfrentando os
tomara-que-chova minados de praças, em batalhas renhidas pela meia-passagem. O
tempo passou. Constituímos família, descruzamos rumos, rareamos os encontros.
Por
últimos, tínhamos um encontro marcado anualmente. Podíamos passar todo o ano
sem nos ver, cada qual com o seu cada qual de viver, mas quando dava junho,
estávamos lá ao lado do anfiteatro da Praça da República nos completando um ao
outro, atualizando a lida, partilhando as mazelas do coração e arriscando um
coro ou um passinho da coreografia, em meio à folia do Pavulagem.
Até que
veio a pandemia e a treva política que nos envolve. Meu amigo sumiu.
Desde
que tomei a segunda dose, pus na cabeça ir atrás de notícias. E deu tudo nos
conformes. Falei com a cunhada dele. Ela muito prestativa, me deu caneta,
papel. Anotei todos os telefones de contato dele e de pessoas próximas, e ainda
me recomendou: “não vai perder! Aí tem tudo que precisas”. Continuei a caminhada.
Uma paradinha para atravessar a Alferes Costa, e se deu o sobressalto. Quando o
sinal da travessa fechou, reiniciei o trajeto. No meio da travessia, dois
motoqueiros cidadãos do bem ostentando bandeirinhas do Brasil no guidão das
motos, em manobra irregular dobraram na Alferes. Frearam bruscamente bem pertinho
já, e ficaram acelerando. Tive que dar aquele velho pique para não passarem por
cima de mim. Na agonia, nem percebi que larguei o papelzinho com os telefones
para trás. Cheguei em casa sem.
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