O bom cristão
Ando
revisitando alguns episódios de “Game of thrones”. Durante o recolhimento da
pandemia, me resolvendo com a insônia, crises nervosas e muita tensão, desanuviei
acompanhando as oito temporadas da série.
Agora,
expandindo as atenções, mas não descartando um jeito de desviar das pressões
diárias, tô salteando uns episódios e remendando impressões sobre detalhes, triscas
da realidade nem tão fantástica representada em cada episódio.
Tenho
cravado certo nas mais emblemáticas passagens. Para mim, uma sequência
caprichosa, quando se quer entender como é realmente estúpido o poder, é aquela
em que a rainha má, em colóquio denso com um dos ambiciosos vassalos dá um
sinal de como a força e a obediência bruta se sobrepõem à astúcia e à erudição
quando o riscado é dominar, fazer e acontecer. Diante da afirmação presunçosa do
vassalo de que a sutileza e outros elementos pautados na arte política são
suportes eficazes para se exercer o poder, ela em dois ou três lances mostra
que pode ser de outro jeito. Aciona um pequeno pelotão da guarda, dá comandos
aleatórios, inconseqüentes, sem fins ou regramentos; e sem uma resistência
sequer, vê todas as suas determinações serem cumpridas. Inclusive aquela para
intimidar e constranger o interlocutor. Saiu, a rainha, de lado com ar
triunfante e deixou a cena com uma mensagem clara. Não precisa de inteligência
para subjugar alguém. Basta um enfileirado com espadas afiadas em punho e a
ausência total de discernimento dos comandados.
(E qualquer
semelhança percebida com um país tropical abençoado por Deus, inspira reflexão
e ação, urgentemente).
Outra
sequência que tô revendo agora, choca, faz a gente chorar e é de toda sorte
revoltante porque atinge a alma, provoca dor íntima, reflete e invoca
sub-humanidade, traz das profundezas lodosas do ser, todo o emaranhado de
crueldades e perversões. Ocorre quando um príncipe é capturado por um inimigo e
feito prisioneiro. Nos primeiros momentos é torturado, mutilado, sofre os
horrores do calabouço. Ocorre, porém, neste núcleo da trama, a inserção de um
elemento mais abominável ainda no domínio do homem sobre outro. O príncipe
passa por uma sucessão de ataques psicológicos. Vê-se reduzido moralmente,
humilhado, tem seus valores subtraídos e a carga é sempre mais forte sobre ele,
até o momento d’ele não se reconhecer mais como indivíduo único e livre. Passa
na história a ser um pacote humano servil. Submetido pelo seu raptor à perda
total da razão. Vive ao largo no castelo como se fosse um animalzinho de mando
fácil. Sem alma, sem memória, sem sentimentos. Cenas fortes que nós, pessoas
comuns, de meras éticas, e voltadas para os costumes do vulgo, nos pegamos a
repugnar, mesmo porque, coisa que o bom cristão, em solidariedade ao Senhor
Jesus imolado não tolera, é a tortura.
Aí me
ocorre uma ocasião de muita chuva em Belém e aquele trecho da Presidente
Vargas, logo ao pegado da Enasa, alagado. A água veio na canela. Estava no
caminho de casa e vi que meu ônibus tinha parado no sinal bem na dobra. Tirei
as botas, chapinhei na água. A chuva ainda caindo forte. Fiz sinal e pedi para
o motorista abrir a porta. A chuva dando no meu lombo. Os pés mergulhados na
lagoa. Pouco movimento na rua. Ali não era a parada eu sei. Mas a chuva, o
alagado da rua. Ele me lançou um olhar de desprezo e entendi a mensagem. Tinha
o estúpido poder. Humilhado, lembrei da rainha má e do pobre príncipe. Subi no detrás.
O motora do outro ônibus, o bom cristão, que nem era do meu itinerário se apiedou,
abriu a porta pra mim e me deu livramento daquele pampeiro, daquela água dando na
canela.
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