sábado, 31 de julho de 2021

crônica da semana - florada dos ipês

 A florada dos ipês

É dito e repassado, pela família e por amigos chegados que sou, digamos assim, metódico. É tudo no adiantado e aprumado para cada passo a ser dado.

Posso confirmar essas manias de ter tudo certinho dando exemplo da segunda-feira. É o dia que começa minha jornada de trabalho. Às cinco da matina. Quer dizer, tem inicio formal na madrugada. No real, o que conta é que minha segunda começa a partir do meio-dia de domingo. Posso estar no maior pagode. Na curtição de uma praia de Outeiro agitada ou na banca do escritor paraense ladeado de estrelas. Bateu a campa do meio-dia, já é segunda.

O mesmo acontece aqui na coluna do sábado. Posso entregar a crônica a qualquer tempo. Mas tenho uma lei me regendo que diz a entrega ser na quarta-feira. Rígida e impenetrável. Para enviá-la, de quarta, não passa. Digo além: já deve estar pronta. A quarta é só para fazer pequenas correções e uma leitura em meia-voz para captar o ritmo.

Acontece que essa semana não. São 5 da tarde, da plena quarta-feira, e ainda estou nos arrodeios.

Sem espanto. Não mudei da água pro vinho não. É que me impus escrever só depois de ter tomado a segunda dose da vacina. Queria sentir este clima imediato da imunização completada. Entender e tentar traduzir qual o sentimento que prevalece na mente e no coração da gente, e como isso se revela aqui.

Fiz uma liga procurando casar este finzinho de julho que traz a primeira florada dos ipês que se espalham por Belém. É que foi exatamente há um ano que saí de casa para criteriosa e apartada das gentes, caminhada matinal. Explorei a Marquês de norte a sul. Reencontrei minha cidade, a brisa matinal, o céu azul-azul da minha Pedreira querida, o canto dos pássaros, o voo ligeiríssimo do colibri, o professor Paulo Nunes (igualmente em caminhadas criteriosas e solitárias), e a beleza notável daquele encarreirado de ipês que se dispõe nas duas margens do passeio, no trecho final próximo ao canal do Galo. Tudo por essa época, julho já beirando agosto.

E foi saudável esta ligação entre estes dois períodos porque ela resume, acho eu, todo o esforço que fiz para sobreviver. Para chegar até aqui, na segunda dose, valorizei muito a solidão, o isolamento, os protocolos rígidos para uma simples caminhada.

Enquanto escrevo, posso assegurar que a sensação que tive ao tomar a vacina foi a de ser um sobrevivente. Um brasileiro que apesar de tudo (meu Deus! Meu Deus! Apesar de um presidente que ainda hoje joga contra. Um presidente que, meu Deus! Meu Deus! gravou um vídeo fazendo a imitação de uma pessoa morrendo com falta de ar!), contra tantos vaticínios sombrios, tantas negações e fake news, conseguiu, depois de um ano, quatro meses e três horas na fila, tomar a segunda dose da imunização.

Poderia estar agora enlevando este momento tão caro para todos nós brasileiros, mas olha, tomei a agulhada, e no lugar do êxtase me veio o abatimento.

É que me parece não haver vitória. Durante as três horas que permaneci na fila, ali na minha frente, coisa de quatro pessoas além ou um pouquinho mais, uma mulher, que estava como acompanhante, permaneceu com a máscara no queixo. E procurava interagir e falava com a acompanhada de palmo em cima. Na fila da vacina! Todos de máscara. Só ela com a máscara no queixo...

Vou arrumar minhas coisinhas, posto que voltei ao trabalho presencial. Agora só caminho nos fins de semana. Espero, no sábado, topar com os ipês florando a minha caminhada matinal, ainda em necessária solidão.

 

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