Terra à vista
A
tarde estava paradinha de sons e claridades. Descemos a Presidente Vargas contra
o vento. Uma liberdade fresquinha de brisa-Belém nos guiava feliz na ladeira
rumo à Guajará. O trânsito estava interrompido e a ladeira era toda nossa.
Embicávamos na baixada em folguedo. A tarde, em contrapartida, quebrava a ligeira
euforia e inspirava os medos. Um alvoroço lá pras bandas da praça Waldemar
Henrique nos causou espanto. Alguém disse algo sobre arrastão. Ao sentir o
risco, minha filha ligou o instinto de sobrevivência, largou-se de nossas mãos
e saiu em desabalada tirando em carreira decidida a largura da Boulevard em segundos
tais que me travaram as reações. Era uma bebê. Ali pelos seis, sete anos. Porém
atenta e ágil. Após o breve apagão saí atrás. A avistei entrando na estação das
docas na corrida aprumada sem voltar-se um isso para trás. Neste exato momento
encostava um navio com grande festa no seu interior. Ao lançar a ponte,
Amaranta não titubeou. Desviou o necessário, acessou a ponte e entrou no navio.
Eu imediatamente atrás. Adiante, no convés, em meio a multidão em vigorosa
algazarra, eu já pertinho, a vi pular para além da balaustra. Pulei atrás para
a baía.
Caímos
dentro de um submarino. Quando dei pela razão, Amaranta estava à frente dos
botões luminosos do painel de comando. Acionava uma alavanca aqui, um joystik
sobre a prateleira metálica ali e me informava que daríamos um passeio pelos
sonhos da Guajará.
O
submarino não era o comum dos que imaginamos. Por vezes se assemelhava a um barco
navegando em superfícies acetinadas do mar austral. O fundo da baía também não
se mostrava fiel aos modelos. Em longos e azulados trechos era céu. Tinha
peixe, tinha passarinhos verdinhos e tinha sol e nuvens de algodão doce. Aqui
ali, um peixinho batia na parede do submarino e o som que se produzia era de
canções conhecidas que emocionam a gente. Eram choques musicais no coração.
Contornamos a ilha dos Periquitos e sugeri que dali a gente alcançasse o furo
do Combu. Até que tentamos, mas os sonares indicaram maré baixa e um
congestionamento de matapis e puçás no caminho. Viramos o rumo para norte em
busca do mar aberto. A corrente era de vazante e passamos com mais de mil por
Cotijuba, costeamos o Marajó num pulo, demos dois guizas de leme nas ilhas
Caviana e Mexiana e, meu Deus! penetramos deslumbrados no canal sul do rio
Amazonas. Um arrepio nem nos deixa falar, a correnteza lá é tão forte, o
submarinho se alinhou no rumo leste e ganhou tanta velocidade que só em câmera
lenta e em caixa alta dá pra definir aquele momento: MA RA VI LHO SO! Quando
conseguimos nos refazer do transe do caudal, nos aproximamos da janela lateral
do submarino e vimos passar por nós as margens vivas, as gentes, orquídeas, os
ornamentos e os cantos de nossos ancestrais, seringueiros esguios de cabelos
brancos, macaquinhos de cheiro em cima de árvores gigantescas. Amarantinha
sentenciou: como o Amazonas é rico! Areinhas, argilas passando por nós
apressadas em toneladas. Tinham destino certo. O mar. O canal do Amazonas é um
canhão poderoso. Lança fragmentos de nossas fantasias além dos paredões
continentais. E este instante estava perto. Um turbilhonamento nervoso foi
percebido. Um estrondo de pororoca anunciou a foz. Uma revolta líquida sacudiu
as estruturas do submarino e decidimos subir. Amaranta acionou o botão, os
motores forcejaram e subimos tanto que chegamos bem pertinho das nuvens. De lá,
vimos a mãe África.
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