sábado, 28 de novembro de 2020

crônica da semana - óleo jaçanã

 Por uma lata de óleo Jaçanã

Um alvoroço se formou no salão. O cortejo logo se adiantou para o depósito. Seu Zelão, avisado, se dirigiu para lá, com um andar balanceado que distribuía para todo o ambiente, o barulho das chaves engatadas ao cós da calça social. No caminho, nos chamava, os moleques empacotadores, que àquela hora, andávamos nos topando pela frente dos caixas, procurando o que fazer, já que pouca coisa para empacotar havia. Hora morninha da tarde. Movimento ralo, ralo.

Juntamos uma patota de curiosos e partimos para o depósito. Não sabia, que naquela ocasião presenciaria cenas de tortura e humilhação abomináveis e que marcariam barbaramente a minha infância.

Porque eu ainda era uma criança (e é por isso que menores e adolescentes devem ser protegidos de situações de vulnerabilidade, porque olha, o mundo é perverso).

Aos 12 anos, havia conseguido fichar no supermercado de carteira assinada e plaquinha de identificação no peito. Antes mesmo de fichar, por causa de alguns parentes que trabalhavam na loja, fazia bico como encostado. Sem plaquinha. Sem uniforme. Formei uma dupla com um moleque por nome “Guarda-Mirim”, esperto que só ele. Garantia o carreto dos barões e com a parceria, eu empacotava que só, fazia entregas nas casas, deixava os paneiros no táxi e, ao final do expediente saía com um bom apurado em gorjetas. Ele era o meu coach.

Depois de um tempo apurando só o da gorjeta como encostado, fichei. Recebi a bata que servia de uniforme e a plaquinha. De tamanho único, mamãe teve que fazer um ajuste nas medidas da bata e aí... o seu Zelão, sempre ele com aquele cinismo, aquela arrogância alva, aquele menosprezo, ao perceber que o alinhavo da mamãe tinha deixado a bata com um caimento muito justo em mim, não teve o menor pudor, quando foi dar o beabá da empresa, a mim, agora como contratado, de perguntar se eu era veado pra andar assim, todo apertadinho. Eu que nem rapazinho formado era, sequer tinham brotados os pelos, ainda. Não estava preparado para responder se era veado ou homenzinho desprezível igual a ele. Nada da vida sabia, O que me movia era apenas o instinto de sobrevivência, a necessidade real da gorjeta ao final do dia. Sabia apenas que enfrentava aquele constrangimento porque era um molequinho atrás de vender a minha força de trabalho infantil e com urgência. E eu que desconcertado ficara, com aquelas boas-vindas nem maldava que aquilo seria um sinal. Era indício de um comportamento baseado na certeza inabalável de superioridade que ele tinha. Então nada lhe era negado. Tudo lhe era possível. Ele era o gerente. O dono das nossas reações e disposições. Montava-se sobre o poder. E o poder, assumido assim, corrói  a humanidade. Dilui empatias, pulveriza o último grãozinho de solidariedade que possa resistir em um ser volúvel, bandado e oco.

Seguimos o cortejo pelos corredores do depósito. Adiante, um rapaz, dominado pelos seguranças.

Seu Zelão avançou. As chaves no cós da calça barulhando, o andar balançado. Encarou o homem, ofendeu, disparou desprezo, asco e por fim aplicou um soco tão potente que o rapaz foi sacado das mãos dos seguranças  e desabou no chão. A seguir, os outros completaram o serviço com socos e pontapés. Aquela era a lei dos escondidos, do lá pra dentro, do corredor polonês do depósito. Do seu Zelão.

Um falatório difuso adiantava que o rapaz teria sido flagrado com uma lata de óleo Jaçanã dentro da roupa.

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