Cabelouro
Eu era moleque
zinho ainda, lá das beiradas do rio Acre, na época em que a Jovem Guarda
marcava pontos nos altos da parada de sucesso. O meu lugar de ser e de estar mesmo
era o ermo do seringal. Vez por outra é que meu papai entrava em transe, dava
uma doideira nele, arrumava a filharada, mamãe, parentes, aderentes, jogava os
pequeninos no caçuá, e ganhávamos o rumo da cidade no lombo dos burros, em
animado e extenso comboio.
A casa da vovó
Raimundo era nosso abrigo, em Xapuri. Ficava na rua da Gaveta. Tinha parede de
barro, um portãozinho baixo e testeira de enchimento. Era o chamego da vovó.
Embora já cangasse grilo pra cima e pra baixo, quando estava na cidade, voltava
a ser neném com direito a colinho e papinha toda noite. Eu é que não reclamava.
Aproveitava a paixão e o encantamento que a vovozinha tinha por mim.
A cidade me
alertava para outras experiências. O Raimelo, que era a rádio de poste e transmitia
para toda a beira do rio, e ainda o picolé da sorveteria Sibéria, que tinha
formato cilíndrico e era apresentado em todos os deliciosos coloridos do mundo.
Um passeio pela orla era o programa da família de tardinha. Vêm daqueles passeios
vespertinos à beira do rio Acre, as sensações, uma emoção inexplicável para a
idade tenra, os soluços que a voz de Vanusa provocava em mim. Guardo na gaveta
dos mistérios a minha reação nas vezes em que o Raimelo irradiava o sucesso do
momento: “Pra nunca mais chorar”. Aquele arranjo emparelhando a voz adensada da
cantora com um coro plangente de fundo me esmigalhava o coração e o que não era
pra acontecer nunca, acontecia convulsivamente. Chorava que me acabava.
Mergulhava numa tristeza, numa palidez de alma. Eu, gitinho, chorava que
soluçava. Sem razão nenhuma. (Hoje penso que sentia uma saudade. Eu moleque zinho,
chorava de saudade, talvez, desse futuro que hoje foge da gente). Nem o picolé
mais colorido me consolava. Um alento só vinha quando me aninhava no colo da vó
Raimunda.
O presença
marcante de Vanusa, na minha jornada, notadamente, foi mediada pelas minhas
avós. Com papinhas e carinhos ali no Xapuri; com alertas e ralhos aqui em Belém.
Uma companhia ora marcada pela voz fascinante, ora pelos loiros cabelos
deitados sobre os olhos.
Mais tarde,
depois de cruzar a Amazônia a bordo do navio Domingos Assmar e dar com a
família na Pedreira do samba e do amor, e um quê além de adestrado à cidade grande,
não chorava mais. Vanusa se mostrava agora, pela tela de TV ou pelas capas de
revistas, além da voz.
Nas brenhas do
Acre, só as ondas dos rádios nos encontravam. Eram os nossos sentidos, estimulados
pelo som. Em Belém, a imagem era reveladora. Completava e redirecionava a
outras frentes que não somente à emoção, aquela elaboração que eu fazia da
cantora.
Nas ruas da
Pedreira, a garotada quedava-se à moda. Eu, minhas irmãs, vizinhas, e meio
mundo de fãs procurávamos remedar a cantora naquela que era a marca registrada
da sua imagem, a franja loira. A gente via na TV, o poder daquele penteado. O
movimento decidido ao jogar a franja para trás, o brilho doirado dos cabelos, que
no preto e branco da televisão até encandeava a gente, o olhar dizendo sermos
nós, o infinito.
Tinha até mandingas
para nos aproximarmos dela na categoria da tez: em casa era briga pra comer uma
peça da carne conhecida como cabelouro. Uma placa amarelada, de textura
emborrachada que, diziam os iniciados, se a gente consumisse com fé e
regularidade, nos tornaríamos louríssimos.
A vovó Marieta,
de Belém, não via graça nessas arrumações. Pra ela, cabelouro era langanho da
carne; franja era ‘cabelo no olho’, dava catarro e enfraquecimento na gente.
Belém me alertava para realidades diferentes daquelas que eu vivia no seringal.
Era o mundo paralelo da metrópole sucedendo o ermo. De certo e justo, só a encantadora
voz de Vanusa realinhava as fronteiras.
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