sábado, 14 de novembro de 2020

crõnica da semana - cabelouro

 Cabelouro

Eu era moleque zinho ainda, lá das beiradas do rio Acre, na época em que a Jovem Guarda marcava pontos nos altos da parada de sucesso. O meu lugar de ser e de estar mesmo era o ermo do seringal. Vez por outra é que meu papai entrava em transe, dava uma doideira nele, arrumava a filharada, mamãe, parentes, aderentes, jogava os pequeninos no caçuá, e ganhávamos o rumo da cidade no lombo dos burros, em animado e extenso comboio.

A casa da vovó Raimundo era nosso abrigo, em Xapuri. Ficava na rua da Gaveta. Tinha parede de barro, um portãozinho baixo e testeira de enchimento. Era o chamego da vovó. Embora já cangasse grilo pra cima e pra baixo, quando estava na cidade, voltava a ser neném com direito a colinho e papinha toda noite. Eu é que não reclamava. Aproveitava a paixão e o encantamento que a vovozinha tinha por mim.

A cidade me alertava para outras experiências. O Raimelo, que era a rádio de poste e transmitia para toda a beira do rio, e ainda o picolé da sorveteria Sibéria, que tinha formato cilíndrico e era apresentado em todos os deliciosos coloridos do mundo. Um passeio pela orla era o programa da família de tardinha. Vêm daqueles passeios vespertinos à beira do rio Acre, as sensações, uma emoção inexplicável para a idade tenra, os soluços que a voz de Vanusa provocava em mim. Guardo na gaveta dos mistérios a minha reação nas vezes em que o Raimelo irradiava o sucesso do momento: “Pra nunca mais chorar”. Aquele arranjo emparelhando a voz adensada da cantora com um coro plangente de fundo me esmigalhava o coração e o que não era pra acontecer nunca, acontecia convulsivamente. Chorava que me acabava. Mergulhava numa tristeza, numa palidez de alma. Eu, gitinho, chorava que soluçava. Sem razão nenhuma. (Hoje penso que sentia uma saudade. Eu moleque zinho, chorava de saudade, talvez, desse futuro que hoje foge da gente). Nem o picolé mais colorido me consolava. Um alento só vinha quando me aninhava no colo da vó Raimunda.

O presença marcante de Vanusa, na minha jornada, notadamente, foi mediada pelas minhas avós. Com papinhas e carinhos ali no Xapuri; com alertas e ralhos aqui em Belém. Uma companhia ora marcada pela voz fascinante, ora pelos loiros cabelos deitados sobre os olhos.

Mais tarde, depois de cruzar a Amazônia a bordo do navio Domingos Assmar e dar com a família na Pedreira do samba e do amor, e um quê além de adestrado à cidade grande, não chorava mais. Vanusa se mostrava agora, pela tela de TV ou pelas capas de revistas, além da voz.

Nas brenhas do Acre, só as ondas dos rádios nos encontravam. Eram os nossos sentidos, estimulados pelo som. Em Belém, a imagem era reveladora. Completava e redirecionava a outras frentes que não somente à emoção, aquela elaboração que eu fazia da cantora.

Nas ruas da Pedreira, a garotada quedava-se à moda. Eu, minhas irmãs, vizinhas, e meio mundo de fãs procurávamos remedar a cantora naquela que era a marca registrada da sua imagem, a franja loira. A gente via na TV, o poder daquele penteado. O movimento decidido ao jogar a franja para trás, o brilho doirado dos cabelos, que no preto e branco da televisão até encandeava a gente, o olhar dizendo sermos nós, o infinito.

Tinha até mandingas para nos aproximarmos dela na categoria da tez: em casa era briga pra comer uma peça da carne conhecida como cabelouro. Uma placa amarelada, de textura emborrachada que, diziam os iniciados, se a gente consumisse com fé e regularidade, nos tornaríamos louríssimos.

A vovó Marieta, de Belém, não via graça nessas arrumações. Pra ela, cabelouro era langanho da carne; franja era ‘cabelo no olho’, dava catarro e enfraquecimento na gente. Belém me alertava para realidades diferentes daquelas que eu vivia no seringal. Era o mundo paralelo da metrópole sucedendo o ermo. De certo e justo, só a encantadora voz de Vanusa realinhava as fronteiras.

 

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