sábado, 7 de novembro de 2020

crônica da semana - panorâmica

 Panorâmica

Vinha sempre de um lugar longe. Chegava pingando de tanto suor, dos distantes arrabaldes que abrigavam o Instituto Bom Pastor, das cercanias de Marituba, dos igapós estivados do Jurunas ou dos covões de São Brás. Era comum trazer consigo a visão panorâmica dos locais por onde passava.

Era um homem grande. A idade se anunciava nos cabelos brancos, na pele gretada, e num discreto manquitolar que o projetava desengonçado para frente, quando andava. Por outro lado, não deixava dúvida sobre o vigor remanescente. Uma força cearense. Cabra da peste. Vivente de fé. Pé rachado. Cabeça erguida. Sem medo. Tinha energia bruta, abundante, e que lhe permitia ânimo e fôlego para carregar duas sacolas imensas cheinhas de produtos dos mais variados jeitos, qualidades e padronagens. Alpercatas de couro. Sandálias Cariri, Katina Surf, perfumes e extratos a retalho; flores de plástico e paninhos de crochê para enfeitar mesinhas de centro; uma ruma de encantos, rapadura, cocada, beijo de moça, broa, rosca, pipoca. Estes, os haveres da circunstância, da ocasião. O que garantia a freguesia mesmo era o grupo de engarrafados. Andiroba, copaíba, mel de abelha. Não dava vencimento. Quantos litros conseguisse, lá pelos sítios de Marituba, quantos vendia.

Quando entrava na vila em que eu morava, fazia a festa da garotada. Uma cocada, um pacote de pipoca, uma placa de quebra-queixo, sempre franqueava para a turminha mais animada.

Pedia entrada em casa, batia o pé no batente, tirava o chapéu de couro. Acudia-se de um copo d’água. Largava as sacolas escorando a porta aberta, pra entrar um vento, procurava um canto da mesa rés à parede, aprumava o corpo e sentava no banco mais alto. Não se ouvia um ai deste homem, enquanto enfrentava os estirões com as enormes sacolas penduradas aos braços. Mas ali, em casa, quando se entregava a um descanso, se denunciava em reclamações, em gemidos, em estalos forçados de ossos. Ao se aquietar, as dores o visitavam. Bebia a água, limpava o rosto com um lenço roto. Disfarçava o desconforto muscular com um encarreiramento de sorrisos, com a visão panorâmica que trazia dos longes e ainda com versos e prosas criadas ali, no repente da hora.

Demorava-se nos causos. Conversava fácil e visitava o mundo das palavras e dos sentidos com profundidade abissal, enquanto falava. Certa vez, vindo da beira do igarapé do Galo, refletiu sobre a tristeza de ter que engolir no silêncio, a pilhéria, a encarnação a que fora submetido ao atravessar a ponte do Chaco.  Uma turma de desocupados o tirou pra pagode chamando-o de matuto, de afogoiozado, ceará cabeça chata; avacalharam com o seu caminhar manquitolado. Fazia questão de alertar: não revidava porque não era de confusão, mas tinha guardada, para ocasiões mais aquelas de necessárias, uma lambedeira amolada pra lá de palmo e meio, que o acompanhava desde os tempos do Crato. Não se conformava com esses embates, essas malinezas, essa vocação que algumas pessoas têm para humilhar os outros. Algumas vezes, esquecia que falava com a gente, baixava a cabeça e se perguntava baixinho “por que tinha que ser assim, por quê?”, de volta ao nosso mundo, nos pedia, a nós que éramos crianças, e que o admirávamos e o respeitávamos, para que odiássemos com todas as forças, a ira. E amássemos, sem regras, o amor.

Uma lasca de rapadura que ele dividia animado com a gente e a poesia inscrita em conselho certeiro, me são até hoje, heranças de visões panorâmicas que recebi daquele cearense. E que prezo e zelo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário