Panorâmica
Vinha sempre de
um lugar longe. Chegava pingando de tanto suor, dos distantes arrabaldes que
abrigavam o Instituto Bom Pastor, das cercanias de Marituba, dos igapós
estivados do Jurunas ou dos covões de São Brás. Era comum trazer consigo a
visão panorâmica dos locais por onde passava.
Era um homem grande.
A idade se anunciava nos cabelos brancos, na pele gretada, e num discreto
manquitolar que o projetava desengonçado para frente, quando andava. Por outro
lado, não deixava dúvida sobre o vigor remanescente. Uma força cearense. Cabra
da peste. Vivente de fé. Pé rachado. Cabeça erguida. Sem medo. Tinha energia
bruta, abundante, e que lhe permitia ânimo e fôlego para carregar duas sacolas
imensas cheinhas de produtos dos mais variados jeitos, qualidades e
padronagens. Alpercatas de couro. Sandálias Cariri, Katina Surf, perfumes e
extratos a retalho; flores de plástico e paninhos de crochê para enfeitar
mesinhas de centro; uma ruma de encantos, rapadura, cocada, beijo de moça,
broa, rosca, pipoca. Estes, os haveres da circunstância, da ocasião. O que
garantia a freguesia mesmo era o grupo de engarrafados. Andiroba, copaíba, mel de
abelha. Não dava vencimento. Quantos litros conseguisse, lá pelos sítios de
Marituba, quantos vendia.
Quando entrava
na vila em que eu morava, fazia a festa da garotada. Uma cocada, um pacote de
pipoca, uma placa de quebra-queixo, sempre franqueava para a turminha mais
animada.
Pedia entrada em
casa, batia o pé no batente, tirava o chapéu de couro. Acudia-se de um copo d’água.
Largava as sacolas escorando a porta aberta, pra entrar um vento, procurava um
canto da mesa rés à parede, aprumava o corpo e sentava no banco mais alto. Não
se ouvia um ai deste homem, enquanto enfrentava os estirões com as enormes sacolas
penduradas aos braços. Mas ali, em casa, quando se entregava a um descanso, se
denunciava em reclamações, em gemidos, em estalos forçados de ossos. Ao se
aquietar, as dores o visitavam. Bebia a água, limpava o rosto com um lenço
roto. Disfarçava o desconforto muscular com um encarreiramento de sorrisos, com
a visão panorâmica que trazia dos longes e ainda com versos e prosas criadas
ali, no repente da hora.
Demorava-se nos
causos. Conversava fácil e visitava o mundo das palavras e dos sentidos com profundidade abissal, enquanto
falava. Certa vez, vindo da beira do igarapé do Galo, refletiu sobre a tristeza
de ter que engolir no silêncio, a pilhéria, a encarnação a que fora submetido
ao atravessar a ponte do Chaco. Uma
turma de desocupados o tirou pra pagode chamando-o de matuto, de afogoiozado,
ceará cabeça chata; avacalharam com o seu caminhar manquitolado. Fazia questão
de alertar: não revidava porque não era de confusão, mas tinha guardada, para
ocasiões mais aquelas de necessárias, uma lambedeira amolada pra lá de palmo e
meio, que o acompanhava desde os tempos do Crato. Não se conformava com esses
embates, essas malinezas, essa vocação que algumas pessoas têm para humilhar os
outros. Algumas vezes, esquecia que falava com a gente, baixava a cabeça e se
perguntava baixinho “por que tinha que ser assim, por quê?”, de volta ao nosso
mundo, nos pedia, a nós que éramos crianças, e que o admirávamos e o
respeitávamos, para que odiássemos com todas as forças, a ira. E amássemos, sem
regras, o amor.
Uma lasca de
rapadura que ele dividia animado com a gente e a poesia inscrita em conselho certeiro,
me são até hoje, heranças de visões panorâmicas que recebi daquele cearense. E
que prezo e zelo.
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