sábado, 18 de abril de 2020

crônica da semana - casa de cachorro


Casa do cachorro
Quando sou estimulado a escrever sobre nossa caminhada em Barcarena, percebo que meus companheiros de trabalho, aqueles que restaram dos primeiros tempos, preferem casos jocosos, passagens da bandalha, curiosidades da peãozada.
Aquela primeira fase, desde a travessia na balsa com os mineiros impressionados de ver a baía do Guajará, foi de treinamentos e durou ano e pouco. É dela que guardo os acontecimentos mais divertidos, inusitados.
Durante o período de estudos, o destaque foi o nosso jogo de futebol. Como formávamos uma turma grande, dois horários foram criados. A jornada correspondia a um dia de oito horas de trabalho, só que era de aula. Meu grupo iniciava às três da tarde e encerrava às 23 horas (este horário, aliás, inviabilizou a minha permanência na UFPA. Meu curso era à noite. Tive que abandonar).
Gente dos quatro cantos do Brasil, querendo se conhecer, criar laços. E o que une um monte de marmanjo se não uma partida de futebol? E foi rápido. Tinha um campo comunitário com iluminação e tudo, perto dos alojamentos, então era só acabar a aula, todo mundo já com seu material, a gente acendia a luz e a bola rolava. Total insensatez. O jogo varava a madrugada.
Se era um despropósito aquele horário, por outro lado, pelo espírito esportivo serviu para nos conhecermos melhor. Aquele que tinha uma liderança, o nervosinho, o conciliador, um outro que não estava nem aí, o didático, o formal e o bandalho total. Eu era da turma do ‘não está nem aí’. Não tinha mais aquela pegada de grande atleta do glorioso Internacional da Mauriti, me faltava o animus pela competição e fôlego para disputas mais acirradas. Resulta que ficava só na manha, na banheira, atrapalhando o goleiro. Se a bola viesse no meu pé, até que fazia uma graça, mas se não viesse, eu é que não corria atrás.
Mantivemos a pelada por um bom tempo, até que um dia a bola caiu no terreno de uma casa que tinha um cachorro deste tamanhão e ninguém se atreveu a pegar. E pior, o culpado dessa situação delicada, fui eu. Empastelei o jogo. Aconteceu d’eu estar numa boa, lá na banheira, me escondendo do último zagueiro do time deles, que não me largava, quando o jogo foi parado. Não tem aquele que quer ser juiz e decidir todas as jogadas? Pois é, o pequeno parou o jogo alegando falta nele próprio. Nosso time contestou e a turma ficou naquele empurra-empurra, naquele foi-não-foi. Saí lá do meu lugarzinho, detrás do zagueiro, entrei no meio do bolo de gente, peguei a bola, e perguntei pro adversário se ele iria insistir naquela falta. Ele, já alterado, confirmou. E sentenciou: ou era falta ou não tinha mais jogo. Aí eu, invocado que era também, falei que estava decidido. Era falta. E mandei ele ir buscar a bola. Dei uma bicuda pra longe e a bola caiu lá na casa do cachorro. Nunca mais teve o futebol da madrugada.
O dono da casa, na certa tomado por uma revolta provocada pela perturbação daquele jogo de bola fora de hora, não devolveu a bola. Por dias, quando passávamos pelo local, ainda flagramos o dog brincando de estraçalhar a pelota.
Foi até bom acontecer a arenga no jogo. Nos conhecemos e nos respeitamos mais. Identificamos o calibre de cada um. E tomamos rumos mais objetivos. Passamos a dormir melhor. As aulas exigiam, tinha prova. Alguns refizeram a rotina para se adiantarem nas matérias.
Cada treinamento durava três meses. No final, foi acrescentado o curso de Química e a viagem para Ouro Preto. Ah, Ouro Preto!


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