sábado, 5 de outubro de 2019

crônica da semana - sabiá


Sabiá
Ouvi dizer que partiste. Foste defender a tua história em outras trincheiras. Levaste as crias. Teu talento. Planos recentes. Uma quebra na dorsal imersa da humanidade mais pura te separou do teu canto. Amores e afeições de um lado; desafios e luta pela sobrevivência de outro. Recomeço. Gente outra, frio e sotaque assim de estranhezas. Em outras terras, escreves em paraensês a crônica da resistência.
Plataforma de estação, medo de avião não te aviaram o gosto pela despedida. Tua partida está ao vento. O adeus sutil abranda o coração de quem fica. Sossega a alma de quem parte.
Não haver despedida impõe a aridez da separação, dissipa as lágrimas, evapora calorosos abraços. Dissimula o sofrimento. Mas quando tornamos... Arde na gente que só.
À chegada da notícia, foi que me dei conta que além de ti, outros amigos andam sumindo assim.
Muitos fizeram o mesmo. Arrumaram as malas, escolheram um lugar possível para viver e ganharam o mundo. Mina deles viajaram para dentro de si e desapareceram silenciosos.
Ambos, o exílio físico e o exílio espiritual corroem do mesmo jeito. Representam perdas, refletem derrotas. Ninguém abandona seu torrão por gosto. Forças nocivas ou pressões urgentes catalisam a decisão.
Ocorreu comigo um dia. Quando entrei num avião pela primeira vez e sumi, passei um tempão mofino. Chorava todo dia. Carecia de órgãos, partes vitais, pedaços de mim que haviam ficado em Belém. Foram dez anos no mundo. Dez anos com lágrimas escorrendo dos olhos a cada embarque no avião, a cada estirão de estrada. Eu vivia sumindo assim. Mas voltei.
Penso que o desterro é o gume fatal de fino e certeiro corte. Nos leva a jorros de sangue. É a carne vibrando, a voz gritando, os olhos em brasa, mutilação de ideais e vontades, ocorrendo em vapores invisíveis. Ninguém percebe. Para os outros, anfitriões ressabiados, somos um alien curioso, satisfeito com novas regras e planos. Por dentro nos diluímos em desilusões. Ninguém abandona seu torrão por gosto ou termo.
E se há causa para desenhar em outras telas a arte da revolução, é porque a ofensa é dilacerante. O ataque é selvagem. A covardia grassa insidiosa, odiosa. É que o recuo se faz necessário para recompor as forças, conquistar aliados, redefinir táticas.
Confesso que me vejo novamente ganhando o mundo, também. Fugindo de gente que nos abalroa na maldade só para medir força; eu me imagino da mesma forma desviando diariamente das cercas em que se confinam reses gosmentas organizadas na missão de me espantar com seus mugidos roucos. Penso que poderia sim, buscar um lugar bem longe para me esconder dos fantasmas que me perseguem em sonhos tensos, com a mesma desenvoltura que me acuam em delicadas confrarias, nutridos da sanha incontrolável de me impor o terror. Sem me despedir, admitindo o risco de ser esquecido, zarparia no primeiro batelão para o Acre, contanto que me visse aliviado, por um tempo, daquela pessoa que se incomoda porque leio no ônibus o livro da paciência.
O rumo que posso tomar poder ser a quilômetros daqui, além dos limites da baía do Guajará, adiante das matas do agronômico, do marco da primeira légua, ou pode ser um caminhar profundo para dentro de mim. Posso dispensar minha substância, embotar meu olhar, distrair-me deliberadamente de qualquer som, abstrair-me dos rogos da natureza. E ir-me sumindo assim.
Mas, de repente, posso voltar e fazer a minha revolução.


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