domingo, 27 de outubro de 2019

crônica da semana - caçadores coletores


O alvorecer da humanidade
Morei em Macapá no início dos anos 90. O Amapá, naquele tempo, contava com pouco mais de 300 mil habitantes, isso na imensidão que se estende do Laranjal do Jari ao Oiapoque e da ilha Mexiana ao parque do Tumucumaque.
Macapá, eu comparava a um bairro de Belém. Quase uma sucursal da Pedreira. Vez em vez, encontrava um rosto conhecido, uma turma de artistas arribada, parentes, aderentes, e chegados dando bobeira no ir e vir da avenida Fab.
Era uma cidade pequena, entretanto, um campo aberto, amplo, rarefeito de tensões, de ocultas ou sutis intenções. Uma imensidão de oportunidades.
Dentre as belezas do meio do mundo, a mim, me marcou muito a orla de Macapá. Uma faixa estreita ainda. Ia da praça Zaguri, até a fortaleza. Dali não se varava. A rua acabava e a outra ponta, onde se localiza a praia do Araxá, se alcançava avançando por dentro da cidade. Para mim era o paraíso, a orla. Vivia o prazer incomparável de estar à beira do Amazonas. Sentir o fortíssimo maral riscando o rosto da gente, no final da tarde e até arrastando para longe a cobertura das barraquinhas da calçada. As ondas vibrando aos pés da estátua de São José e a lua nascendo dentro d’água. Maior, mais colorida e mais bonita lua que eu vi na vida.
Pelo que eu batia e virava, ali na beira, apenas uma peixaria encontrei, naquela época. Nem era na beira. Era pelos escaninhos do Perpétuo Socorro, nos arredores do igarapé das Mulheres. Um lugar modesto. Acanhado. Simplesinho, mas asseado, bem arrumadinho. Só ia lá quem já conhecia, quem tinha a indicação abalizada, e a localização bem explicadinha, fornecida por um freguês antigo. Era discreto. E de uma fineza. De uma qualidade. A especialidade era o famoso camarão no bafo. De tirar o chapéu! Depois que achei o lugar. Não desatei daquele escondidinho.
Saí de Macapá e parei em outras plagas. Passou, passou, o mundo girou, e eis que anos depois, voltei lá. Foi em 2005. Nada, nada, mais de dez anos depois. Participei, representando a minha categoria profissional, de evento sobre os 50 anos de Mineração na Amazônia. Só gente aquilatada. Pesquisadores, doutores na área do desenvolvimento, renomados nomes da Geografia, da Geologia. Jornalistas especializados no tema, sindicalistas. Um povo antenado.
Dez anos depois, a cidade era outra. Não mais reconhecia as ligações, o recantos, os escondidos, o caminho para a lagoa do índio. Tudo mudado. Inclusive a orla, que agora emendava a Zaguri com o Araxá, por uma grande avenida. Uma Beira-Rio minada, agora, de restaurantes e peixarias requintadas.
No programa do evento, havia um almoço numa das peixarias mais famosas.
Naquela reunião de personalidades refinadas, percebi o instinto de posse do ser humano, de conquista, de garantia de comida e espaço. Na hora do almoço, me reconheci no alvorecer da humanidade. Um discreto empurra-empurra científico, um chega-pra-lá acadêmico sem intenção, um olhar corporativo de intimidação eram sinais dos primórdios. À mesa, Peixe de tudo quanto é jeito. Frito, ao molho de cupuaçu, na brasa, ao molho de maracujá, moqueca de Gurijuba...Mas a grande disputa, creiam, era pelo ovo submerso na caldeirada. Naquele alvorecer da humanidade, eu e todas aquelas pessoas de alto gabarito, nos comparávamos aos caçadores-coletores fascinados, lutando para pescar com a concha, aquele misterioso ovo monolítico cozido, mergulhado na caldeirada de Filhote.



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