sábado, 2 de novembro de 2019

crônica da semana - cipó de fogo


Cipó de fogo e palmito
A floresta provê remediações para os aperreios, conforto para a rotina, felicidade ao amanhecer. Prazer ao pôr do sol.
Menos para mim, pensei desolado, um dia.
Eu me considerava um sujeito urbano. Sem o menor traquejo para a sobrevivência em ambiente natural. Se não tivesse um chuveiro, já chiava.
Ironicamente, parte da minha vida, foi me virando com as naturalidades, com as dádivas da floresta.
Tenho então, que remendiar o trecho aí de cima. Não que os benefícios da natureza me tivessem sido negados. A questão é mais profunda. Passa pela identificação. Contorna a história, os saberes. As interações e as necessidades.
Passei poucas e boas, no tempo em que vivia enfiado na mata, nas lidas da profissão. As dificuldades, porém, eram minhas. Não se estendiam às pessoas que estavam comigo e nem se justificavam pelo ambiente.
A minha valência foi que, na maioria do tempo, me cerquei de conhecedores. Habitantes das beiradas. Sacerdotes dos conformes e também das estranhezas.
Estas interações me proporcionaram uma aproximação. Uma certa intimidade com os encantos dos ermos.
Tirando pelo início, se me adiantasse numa picada e perdesse o rumo, podia contar que eu não daria conta de varar. Padeceria de fome, de medo e de sede.
Com o tempo tornei. Conheci o cipó de fogo e o palmito.
Tem macete para tirar água do cipó. Não é de qualquer jeito. Como me ensinaram de graça, passo aqui, porque, vai que calhe de alguma precisão.
Há de se fazer dois cortes e sacar um segmento do cipó. Uma pequena tora. O corte tem que ser enviesado. Deste pedaço, se extrai a água para um recipiente ou a gente ergue sobre a cabeça e bebe direto. Da parte que ficou na árvore, não sai uma gota de água. Só sai assim, em tora. Se precisar de mais, basta cortar outro segmento. Pronto. De sede, já não se padece. Ah, convém ter um terçado de fio bom.
Para superar a fome, tem o palmito.
Comi palmito de todas as palmeiras que encontrei. Até daquela desacreditada, com jeito de pouco amiga, cheia de espinhos. Em alguns casos e nos extremo de broca asseverada, até o terçado é dispensado. A gente pode descascar o caule da palmeira até com os dentes (não, não daquela epinhenta). Lá dentro tem uma polpa nutritiva, hidratada que vai nos segurar saciados por um bom tempo.
Eu já me perdi na mata e me vali de água de cipó e palmito. Garanti energia e sustância. Caminhei um bom tempo, mantive a lucidez e varei. Sem medo.
Mas a questão é mais profunda. Implica interpretar os sinais. Limitar os impulsos. Custei que só para me entender com a floresta. Reconhecer as entidades, respeitar os elementais. Reverenciar a sereia, dita Iara. O Mapinguari de pé pra trás. O Curupira justiceiro de caçador. A Cobra Grande cheia de paixões submersas. A fertilidade de Mani. A sedução do boto.
Custei para entender que a água encanada, vale um isso de nadinha perto de um mergulho numa lagoa do Xingu. E que o palmito que vem na salada, servida naquele restaurante que tem até reclame na televisão, nem dá a sustância que dá aquele âmago da palmeira espinhenta.
Porque à floresta não cabe prover dinheiro, lucro, fama, rótulos nem os letreiros da TV. A floresta, generosamente, provê remediações para os aperreios, conforto para a rotina, felicidade ao amanhecer. Prazer ao pôr do sol.
E nos alivia da fome, da sede e desses medos e assombros que enfrentamos embaixo do chuveiro.





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