sábado, 16 de novembro de 2019

crônica da semana- janelas abertas


Janelas abertas
Eu quereria uma vez na vida ter engrossado as massas, fermentado o pão, multiplicado a comida, saciado de vinho e de vida os mais insanos instantes. Desmedido medidas frias, contornos vis, alinhamentos fatídicos, entalhes fatais.
(Porque a maior frustração da humanidade é conjugar os verbos no futuro do pretérito).
Preferiria que meu sonho fosse pequeno, mas verdadeiro, e a baixada alagada se elevasse em Éden florido, com praças e crianças coloridas a passear ao sol frio de domingo, assistidas por dóceis quadrúpedes e alguns amistosos monstros voadores. Apreciaria as famílias, folgando com os bichinhos de estimação, caminhando ao largo do lago verde de visgos e musgos, e trocando fartos sorrisos aporcelanados . E ainda, misturando cumprimentos e boas intenções. Olás generosos, tudo bens obsequiosos, bons dias assertivos, com licenças e desculpas reparadoras. Obrigados e graças edificantes.
Preferiria não chorar.
Mas chorei ao ler a carta de um artista, que para mim, é uma das maiores revelações da música brasileira, em que ele diz sentir a sua luz se apagar.
Ah, eu estenderia minha malha de soluções, minha esteira de fé, um traçado otimista em caminho tortuoso, para o artista, porque o tenho e o quero vivo e encantando, não fosse também a minha apatia me prender ao chão da desesperança.
Quanta frustração nos vens e vãos da humanidade!
Então, eu deixaria as janelas abertas esperando novos tempos. Sem resistência. Em silêncio, assimilando apenas o silvo acanhado dos ventos puros, captando gemidos vindos de alto mar, sendo bombardeada de santos cuidados, de castos interesses, de sagrados golpes. De joelhos, aplicaria a lei da insignificância, da entrega total. Capitularia.
Deixaria que entrassem pela minha garganta, atrasos e efemeridades. Desgostos e enfermidades. Água em ebulição. Vozes afogadas. Aceitaria engolir o choro até meus olhos se avermelharem e explodirem.
(Porque a grande mágoa, o crasso insucesso da humanidade é conjugar os verbos no futuro do pretérito).
Então eu, por mim, abriria as janelas. Acordaria e resistiria.
Contradiria a regra. Faria o termo certo e justo acontecer. Em linha reta. Sem argumentos falsos ou promessas ornadas de doces venenos.
Os verbos seriam livres e bailariam no tempo, para frente e para trás. Em ações, estados e fenômenos da natureza. Sem conjugação, e sem modos que os moldassem.
Mas o artista quer se apagar. E eu à beira do abismo, em tempo de despencar, rogo por uma força que não sei nem se tenho dentro de mim. Junto meus cacos. Redesenho minhas virtudes. Saio pelas janelas abertas e pairo triunfante sobre as bestialidades e também sobre os exércitos em marcha. E de lá de longe, sopro os narizes dos homens. Das cinzas vem o grito:
Ei, artista, não caia. Não cale. Toque seu violão. Estremeça céus e terras com acordes singulares, ilegais e irresistíveis.
Quereria tanto que de outra forma fosse.
Mas os verbos, as frustrações as humanidades. Tão sem tempo e sem modos.
Preferiria não chorar.
Mas chorei. E meus olhos cresceram e saltaram do rosto, vermelhos mais que o fogo, estúpidos, mais que mísseis de mil megatons, faiscantes como os vulcões do Éden Jurássico. E meus olhos se lançaram para o espaço, para além das janelas abertas do céu. Lá, o mais distante da humanidade, não chorei mais. Cantarolei trechos das músicas do artista, sonhei um sonho pequeno. E explodi.

Um comentário:

  1. Amigo! O prof. Alfredinho onde quer q esteja, tá orgulhoso de Vosmicê, que texto mais pretérito.Parabéns!!!

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