Trovinha
Só
faltaram catorze anos para eu me formar de turismólogo. Mas se alguma coisa
apitasse nesta área, não abonaria de jeito e maneira esta presepada de a gente
ser o exótico, o inesperado. É como se uma cultura pudesse ser normativa,
estável. E todas as outras fossem pontos fora da curva. Um ponto, diga-se, que possa
ser ajustado. Reordenado no zero da função...
Aconteceu
há alguns anos. Eu era dirigente sindical. Em outubro vivíamos o pico das
tensões para a negociação de nosso Acordo Coletivo.
O
grupo empresarial com o qual nos batíamos, lançou mão de uma estratégia de
desmobilização. No calor do puxa-encolhe e das intransigências negociais,
operou a concessão imediata de um agrado para o Círio. Ofertou um peru para
cada peão da categoria. No meio daquela muvuca de reuniões, de assembléias e
deliberações, fomos surpreendidos com este bônus.
Olha
que fiquei piriricas da vida. Não pela trairagem, que isso é tática dos
contendores. Jogam com o que têm. E sim, com a total falta de respeito com
nossa cultura. É sabido, que temperado bem temperadinho no jambu, quem é
servido no domingo da romaria como prato típico do Círio é o pato. O delicioso
pato no tucupi. E não o peru.
Não
sei de onde tiraram essa marmota. Mais que depressa distribuíram o peru, armaram
a cena, classificaram aquela oferenda como um passo determinante para que a
categoria aceitasse os termos defendidos por eles na negociação. Eu mesmo
peguei a parte que me coube naquela latomia. Um teba congelado que ia além de
quatro quilos e que ainda vinha com um pininho que anunciava estar o assado no
ponto.
Magoou.
O peru fez efeito contrário. Articulou o desarticulado e balançou o ânimo dos
trabalhadores. Obstinados que éramos, não largamos da luta. Nada estava
terminado. Tiramos distância e nos pegamos com a Santinha. Precisávamos de força
naquela hora. Urgia revidar àquele ataque desleal a grugulejar em nosso tino.
Era
redator dos informativos do sindicato. Na sequência, busquei inspiração na mãe
dadivosa e fiz um manifesto para os trabalhadores, realçando o sabor das intenções
que recheavam aquele peru; e traduzindo aquela ação como uma forma de pagarmos
o pato pelos evidentes riscos de perdas salariais. Ano difícil. Marcado pela
reestruturação produtiva e modificações drásticas nas relações capital x
trabalho. Carecíamos de muitas bênçãos.
Adiante,
no mesmo informativo, teci um arrazoado antropológico em defesa das nossas
raízes culturais, que no frigir dos ovos, queria dizer à bancada da patronal,
que não, não era peru, o tradicional prato do Círio. Era pato. Pato no tucupi.
Claro
ficou que os representantes dos empresários, sendo de fora, não atinaram para o
desastre que provocaram. Entendemos aquilo como uma interferência colonialista
nos nossos costumes. Um vilipêndio a uma regra culinária, quase sagrada, que vem
se repetindo há gerações. Nossa fé moveu a montanha.
Endurecemos
a parada e fomos bater na mediação, algumas semanas depois. Lembro que em um
dos trechos da nossa tese, citávamos a gafe antropológica. O mediador aceitou o
Acordo Coletivo com os termos a nosso favor, não sei se sensibilizado pela
defesa que fizemos da nossa mais famosa iguaria, se iluminado por alguma luz
divina ou se embasado nas jurisprudências. Assinado o acordo a vida dos
operários voltou aos termos.
Ah,
o peru. Congelado estava, congelado ficou. Sendo que, do Natal não passou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário