Simplesinho
Conzê
Eu
sei traçar uma mediatriz usando somente o compasso. Sem medir com régua, sem
nada. Sei também localizar a bissetriz de um ângulo sem lançar mão do
transferidor, da mesma forma, só na caté, só articulando as perninhas do
compasso.
Aprendi
tudo num livro, antes de entrar na escola. Edição das antigas. Daquelas de
lombada costurada. Livrão massudo assim. Meu tio estudou nele pra fazer os
exames de Admissão ao Ginásio. Tinha que saber Desenho para entrar no
Científico. Depois do caso passado, herdei o livro massudo.
Sei
que para muitas pessoas, saber traçar elementos da Geometria é um conhecimento
absolutamente inútil. Gente que se diz gabaritada, não faz e nem fez questão,
em tempo algum, de saber o que caixas e balatas vem a ser mediatriz ou a tal de
bissetriz.
A
curiosidade de abrir aquele livro e aprender uma ou outra técnica do Desenho,
mais adiante, me ajudou quando entrei na Escola Técnica. Lá, o compasso foi meu
companheiro dileto. Em outros tempos ainda, na pira do desemprego, me vali do
livro de Desenho em aulas particulares concorridas, lá pras bandas do Telégrafo
(quando ainda se estudava Desenho na rede pública). E por ali, nos arredores da
Rodovia Snapp, numa tarde de sábado, por um descuido, me separei daquele livro.
Eu o perdi em lugar incerto. No caminho pela avenida, nos degraus do ônibus, na
casa de uma aluna... Nunca mais.
Mediatriz,
num repente, entendamos como o centro de um segmento de reta. A linha que
divide a reta em duas partes iguais. Por exemplo, o traçado no meio de um campo
de futebol é a mediatriz do gramado. Agora, se o jogador for bater o escanteio
e colocar a bola exatamente no centro daquela meia luazinha no canto do
gramado, a bola ocupará um ponto no eixo da bissetriz do ângulo formado por
aquela curvinha. A bissetriz é a linha que divide um ângulo em duas partes
iguais. No caso do corner do futebol, em dois ângulos de 45 graus.
A
curiosidade é aparentada do horror. Às vezes se encontram e causam turbulência
no ponto de vista do observador. Achar um livro antigo, massudo e de lombada
costurada, cheio de postulados euclidianos pode resultar numa síncope e nos
jogar no chão tremendo e babando verde. Por outra, pode nos ajudar ali adiante,
a sobreviver.
O
mesmo ocorre quando nos deparamos com um dicionário, abrimos uma página no qual
pega e encontramos a palavra “paralisação”.
Nesta
hora divina, caímos na real e reconhecemos o dito e certo que numa hora de
precisar escrever a palavra, tascaríamos no texto a bendita com “z”.
Paralização. A vocalização, a percepção do som, a queda à sedução fonética, nos
empurrariam para o erro.
Assim
como, de repente entender o que são os elementos geométricos mediatriz e
bissetriz exige uma ação libertadora que é abrir um livro, Escrever paralisação
com “s’, também exige a mesma ação.
Só
há uma maneira de escrever as palavras sem o medo de mutilá-las na forma. Tornando-se
íntimos delas através da leitura de várias, várias obras. Literárias,
jornalísticas, técnicas, acadêmicas, religiosas, de saliência ou de trovas inocentes.
É
simplesinho assim com “s”, de mesinha mesmo. Um livro nos acolhe, nos previne e
nos eleva. Para uns, inspira
curiosidade redentora. Para outros, o horror. Quem tem pavor dos livros, quem
ataca a educação; governo que calcina a cultura nas ruas, sofre de uma paralisação
moral irrecuperável. Do tipo simplesinha conzê.
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