sábado, 7 de setembro de 2019

crônica da semana - simplesinho conzê


Simplesinho Conzê
Eu sei traçar uma mediatriz usando somente o compasso. Sem medir com régua, sem nada. Sei também localizar a bissetriz de um ângulo sem lançar mão do transferidor, da mesma forma, só na caté, só articulando as perninhas do compasso.
Aprendi tudo num livro, antes de entrar na escola. Edição das antigas. Daquelas de lombada costurada. Livrão massudo assim. Meu tio estudou nele pra fazer os exames de Admissão ao Ginásio. Tinha que saber Desenho para entrar no Científico. Depois do caso passado, herdei o livro massudo.
Sei que para muitas pessoas, saber traçar elementos da Geometria é um conhecimento absolutamente inútil. Gente que se diz gabaritada, não faz e nem fez questão, em tempo algum, de saber o que caixas e balatas vem a ser mediatriz ou a tal de bissetriz.
A curiosidade de abrir aquele livro e aprender uma ou outra técnica do Desenho, mais adiante, me ajudou quando entrei na Escola Técnica. Lá, o compasso foi meu companheiro dileto. Em outros tempos ainda, na pira do desemprego, me vali do livro de Desenho em aulas particulares concorridas, lá pras bandas do Telégrafo (quando ainda se estudava Desenho na rede pública). E por ali, nos arredores da Rodovia Snapp, numa tarde de sábado, por um descuido, me separei daquele livro. Eu o perdi em lugar incerto. No caminho pela avenida, nos degraus do ônibus, na casa de uma aluna... Nunca mais.
Mediatriz, num repente, entendamos como o centro de um segmento de reta. A linha que divide a reta em duas partes iguais. Por exemplo, o traçado no meio de um campo de futebol é a mediatriz do gramado. Agora, se o jogador for bater o escanteio e colocar a bola exatamente no centro daquela meia luazinha no canto do gramado, a bola ocupará um ponto no eixo da bissetriz do ângulo formado por aquela curvinha. A bissetriz é a linha que divide um ângulo em duas partes iguais. No caso do corner do futebol, em dois ângulos de 45 graus.
A curiosidade é aparentada do horror. Às vezes se encontram e causam turbulência no ponto de vista do observador. Achar um livro antigo, massudo e de lombada costurada, cheio de postulados euclidianos pode resultar numa síncope e nos jogar no chão tremendo e babando verde. Por outra, pode nos ajudar ali adiante, a sobreviver.
O mesmo ocorre quando nos deparamos com um dicionário, abrimos uma página no qual pega e encontramos a palavra “paralisação”.
Nesta hora divina, caímos na real e reconhecemos o dito e certo que numa hora de precisar escrever a palavra, tascaríamos no texto a bendita com “z”. Paralização. A vocalização, a percepção do som, a queda à sedução fonética, nos empurrariam para o erro.
Assim como, de repente entender o que são os elementos geométricos mediatriz e bissetriz exige uma ação libertadora que é abrir um livro, Escrever paralisação com “s’, também exige a mesma ação.
Só há uma maneira de escrever as palavras sem o medo de mutilá-las na forma. Tornando-se íntimos delas através da leitura de várias, várias obras. Literárias, jornalísticas, técnicas, acadêmicas, religiosas, de saliência ou de trovas inocentes.
É simplesinho assim com “s”, de mesinha mesmo. Um livro nos acolhe, nos previne e nos eleva. Para uns, inspira curiosidade redentora. Para outros, o horror. Quem tem pavor dos livros, quem ataca a educação; governo que calcina a cultura nas ruas, sofre de uma paralisação moral irrecuperável. Do tipo simplesinha conzê.


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