sábado, 13 de julho de 2019

crônica da semana - mundiado


Mundiado
Tirando pelo certo e justo, se a gente for na onda da mundiação sem limite e do abismamento inevitável, não desaprega o olho daquele traçado rochoso. Passa horas, dias, eternidades fitando aquele enfileirado de montanhas de topos pontiagudos e branquinhos. Silenciosos. Misteriosos. É coisa de entontecer. A paisagem andina é um espetáculo que, ajudado pelo ar rarefeito da altitude, nos tira o fôlego.
Eu já tinha me deparado com a cordilheira em outra ocasião, quando fui ao Peru, a trabalho. Na época, aliei aquelas imagens coletadas da janela do avião, com outras impressões tiradas de filmes, documentários, séries do National Geographic, sonhos... e escrevi uma crônica falando das montanhas.
Desta vez não foi da janela do avião. Foi de palmo em cima mesmo. Caminhei no meio da neve, senti um anuviamento das ideias por causa da altitude, me aperreei com a falha na suspiração, mas tirei a cisma. A cordilheira é um mundo de maravilhas.
Não tão lírico como interpretei na crônica que fiz da primeira vez que nos batemos. Antes, tinha visto as montanhas com uma plástica rígida, irretocável. Tecida em arremate divino, em força transcendente. Uma obra completa, perfeita.
Agora, no Chile, vi de uma outra forma. Mais humanizada. Ou mais naturalizada. Comparei os paredões gelados com os compartimentos de uma casa desarrumada. Um arranjo sem arremate, inacabado. Com todos os processos construtores em andamento. Em sofrido movimento.
E se a gente for reparar direitinho, é essa sensação que as montanhas provocam na gente. As rochas são dobradas, esticadas, truncadas, cortadas, depois se unem de novo, sobem, descem, quebram-se, enrijecem-se, esmigalham-se, espalham-se em blocos grandes pelo leito dos rios. Quando vão ganhando altura, combinam-se em topos bicudos e rumam para o céu.
Se a gente fica estatuinha da silva para contemplar a cordilheira, a gente se convence de não estar patetando, usando o tempo indevidamente olhando para uma paisagem imutável. O que se apresenta aos nossos olhos, vale a pena. Mesmo que pareça um cenário estático, parado no espaço, a gente não desliga daquele longe belo. Não tira os olhos.
Depois, conhecendo os detalhes, é que a gente vai percebendo o movimento, a vida dos Andes se realizando nos grandes blocos de rochas.
A cordilheira dos Andes é formada por um processo de dobramento conhecido como orogênese. Que no frigir dos ovos e no subir dos picos, quer dizer “formação de montanhas”. Ativada por eventos poderosos, a crosta se ergue, num movimento comparado ao de uma esponja, dessas de lavar louça, sendo comprimida das laterais para o centro. Experimente. Pressione a espoja nos flancos e veja que no meio, ela se eleva. Escritinho assim, é em alguns pontos do Planeta. A pressão é constante. A força não acaba (ou vai levar uns milhões de anos para acabar) e as montanhas como os Andes e o Himalaia, vão crescendo. Ficando mais altas. A última medição diz que o Everest, o ponto mais alto da Terra já é um taludo de 8.844m. A cordilheira dos Andes abriga a montanha mais alta fora da Ásia, o monte Aconcágua, com 6.962m. E continuam crescendo. Estudos mostram que os dobramentos crescem em torno de um metro a cada século.
Do Everest não. Mas do Aconcágua, fiquei um isso aqui de distância. A casa é desarrumada, a cordilheira é um arranjo imperfeito, é uma formosura serpenteada, e por isso mesmo, mundia a gente.

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