sábado, 1 de junho de 2019

crônica da semana - seu pinto


Ao pegado da substação de luz
Rolava pela rua um papo reto afirmando que seu Pinto andava nu dentro de casa. Na boa. Vivia peladão.
Executava os serviços domésticos, detinha-se em prendas mais elaboradas como os reparos na rede elétrica, molhava as mudas, cuidava das roupas no quarador, fazia de um tudo, nuzão da silva, seu Pinto.
Não sei de onde surgiu essa conversa. Dizque foi uma entregação do carteiro, que certa vez foi atendido pelo morador daquela casa ao lado da substação da Angustura, em trajes de Adão. E na mesma pisada foi bater na taberna do canto, já divulgando o ocorrido. Ninguém escalou os altos muros da casa, pra confirmar a versão do carteiro.
Eu o conhecia de vista perto. Era freguês do bar em que eu ganhava um troco. Pelo comum do senso, o tinha como o famoso seu Pinto nu. Mas na prática do dia-a-dia, na atenção da rotina, via sempre bem vestido, na boa e alinhada pinta, seu Pinto.
Batia ponto no balcão todo final de tarde. Se os hábitos intramuros do seu Pinto eram a grande inquietação da rua, e não se confirmavam como verdade, o costume de umas talagadas ao cair da tarde era fato líquido e certo.
Bebia em duas versões. A básica constava de um copo cheio (aquele modelo americano, o famoso copo de bar com linhas verticais marcando as faces cilíndricas e terminando num traçado circular, antes da borda). Da cachaça melhorzinha que tínhamos. Quando eu ia servir, pedia que, quase no limite do copo, eu derramasse bem devagarinho, a bebida, para que coubesse o máximo possível. Usasse o que pudesse do volume extra produzido pela tensão superficial. Ou seja, uma superdose.
Bebia de duas vezes. No primeiro gole, estalava a língua, expressava uma euforia, uma satisfação decrescente até uma breve letargia. Espiava ao longe e dava a impressão de refletir sobre a vida. Passava um pedacinho, tomava o outro gole. Estalava a língua de novo, mas não refletia mais. Fazia um até educado e seguia para abrigo dos seus muros.
A outra versão era aquela que ele chamava de traçado. Nesta dose, levava a pinga até a linha que marca o nível horizontal, logo abaixo da boca do copo. A partir dali, pedia pra completar com vinho, que podia ser qualquer um tinto que tivéssemos na prateleira.
Quando ele tomava o traçado, gostava de puxar conversa. Demorava-se mais.
Nos dias de traçado, dava vontade de perguntar pra ele se era verdade que vivia pelado dentro de casa. Nunca perguntei porque, fora a interação com o conversio da rua, outro interesse eu mesmo não tinha sobre aquele assunto. Tanto fazia para mim, o que acontecia intramuros ali, naquela casa ao pegado da substação de luz.
Melhor não perguntar sobre estas sugeridas estranhezas. Se provocado e sentindo-se à vontade, seu Pinto era um papo agradabilíssimo. Era escritor. Conhecia de coisas que jamais eu imaginaria existir. Era viajado. Tinha uma cultura vasta. Conversava comigo sobre passagens da história que desmontavam preconceitos, boatos, quiquiquis discriminatórios, conversios e pré-julgamentos. Às vezes reinava volver ao teor da fofocagem da rua. Mas a conversa seguia tão farta e fértil, irrigada pelo traçado vermelho, que tornava a especulação do seu Pinto andar nu pela casa de muros altos ao pegado da substação de luz, pauta de vulgaríssimo valor. Vulgaríssmo valor.

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