Ao
pegado da substação de luz
Rolava
pela rua um papo reto afirmando que seu Pinto andava nu dentro de casa. Na boa.
Vivia peladão.
Executava
os serviços domésticos, detinha-se em prendas mais elaboradas como os reparos
na rede elétrica, molhava as mudas, cuidava das roupas no quarador, fazia de um
tudo, nuzão da silva, seu Pinto.
Não
sei de onde surgiu essa conversa. Dizque foi uma entregação do carteiro, que
certa vez foi atendido pelo morador daquela casa ao lado da substação da Angustura,
em trajes de Adão. E na mesma pisada foi bater na taberna do canto, já
divulgando o ocorrido. Ninguém escalou os altos muros da casa, pra confirmar a
versão do carteiro.
Eu
o conhecia de vista perto. Era freguês do bar em que eu ganhava um troco. Pelo
comum do senso, o tinha como o famoso seu Pinto nu. Mas na prática do
dia-a-dia, na atenção da rotina, via sempre bem vestido, na boa e alinhada
pinta, seu Pinto.
Batia
ponto no balcão todo final de tarde. Se os hábitos intramuros do seu Pinto eram
a grande inquietação da rua, e não se confirmavam como verdade, o costume de
umas talagadas ao cair da tarde era fato líquido e certo.
Bebia
em duas versões. A básica constava de um copo cheio (aquele modelo americano, o
famoso copo de bar com linhas verticais marcando as faces cilíndricas e terminando
num traçado circular, antes da borda). Da cachaça melhorzinha que tínhamos.
Quando eu ia servir, pedia que, quase no limite do copo, eu derramasse bem
devagarinho, a bebida, para que coubesse o máximo possível. Usasse o que
pudesse do volume extra produzido pela tensão superficial. Ou seja, uma
superdose.
Bebia
de duas vezes. No primeiro gole, estalava a língua, expressava uma euforia, uma
satisfação decrescente até uma breve letargia. Espiava ao longe e dava a impressão
de refletir sobre a vida. Passava um pedacinho, tomava o outro gole. Estalava a
língua de novo, mas não refletia mais. Fazia um até educado e seguia para
abrigo dos seus muros.
A
outra versão era aquela que ele chamava de traçado. Nesta dose, levava a pinga
até a linha que marca o nível horizontal, logo abaixo da boca do copo. A partir
dali, pedia pra completar com vinho, que podia ser qualquer um tinto que
tivéssemos na prateleira.
Quando
ele tomava o traçado, gostava de puxar conversa. Demorava-se mais.
Nos
dias de traçado, dava vontade de perguntar pra ele se era verdade que vivia
pelado dentro de casa. Nunca perguntei porque, fora a interação com o conversio
da rua, outro interesse eu mesmo não tinha sobre aquele assunto. Tanto fazia
para mim, o que acontecia intramuros ali, naquela casa ao pegado da substação
de luz.
Melhor
não perguntar sobre estas sugeridas estranhezas. Se provocado e sentindo-se à
vontade, seu Pinto era um papo agradabilíssimo. Era escritor. Conhecia de
coisas que jamais eu imaginaria existir. Era viajado. Tinha uma cultura vasta.
Conversava comigo sobre passagens da história que desmontavam preconceitos,
boatos, quiquiquis discriminatórios, conversios e pré-julgamentos. Às vezes
reinava volver ao teor da fofocagem da rua. Mas a conversa seguia tão farta e
fértil, irrigada pelo traçado vermelho, que tornava a especulação do seu Pinto
andar nu pela casa de muros altos ao pegado da substação de luz, pauta de
vulgaríssimo valor. Vulgaríssmo valor.
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