O
discurso do sono e os punhos da rede
Eu
só falo dormindo quando o punho da minha rede está trançado. Se distorcer,
durmo bem que é uma maravilha. Durmo no sossego dos silentes. Na quietude dos
inocentes.
O
custo é ter paciência e habilidade para desemboletar aqueles nozinhos que se
formam ao longo dos punhos, e que são ao primeiro e desalentador contato,
incorrigíveis.
Para
o bem e para o desassombro de todos aqui em casa, nos últimos anos, passei a
dormir na cama. A tagarelice noturna caiu quase a zero (com vaga apenas para
insignificantes resmungos e rabugices por causa de eventuais zunzunzuns de
carapanãs no ouvido). Mas já foi zoadenta e, por vezes, dramática.
Nos
tempos em que vaguei pelos distantes da Amazônia, olha que falava dormindo. Era
o dito palestrinha das madrugadas. Quando dividia quarto, nos alojamentos e
barracos de campanha, era certo que, na hora do café, meus colegas de dormida
relatassem perturbadores colóquios.
O
teor do monólogo normalmente era identificado como uma arenga, uma admoestação.
Um carão a alguém ou ao estado geral do tempo e das coisas. Em casos menos
freqüentes, palavras atropeladas de divertimento, seguidas de incontida
gargalhada. Era o que me diziam. Coitados dos meus companheiros de quarto. Não
sei a causa desta perturbação do sono. Sei que mamãe jurava de pé junto que era
porque o punho da rede estava trançado.
Desconfio
que ocorra como resultado das dissimulações que a gente faz na vigília. À
noite, retornamos com os sapos que engolimos durante o dia.
Percebi
isso quando acampei nas margens do Xingu. Tudo era novidade pra mim. O lugar, a
equipe, o tipo de trabalho. Chegava de uma outra realidade, de pouco contato
com a mata fechada. No Xingu, tive que encarar os riscos e mistérios da
floresta densa. Não podia expressar meus medos e dúvidas diante da equipe que
comandava. Sufocava minhas inquietações, meus descontentamentos, minhas
apreensões, enquanto fazíamos as tarefas da nossa programação.
Tudo
contribuía. Pra completar, os acampamentos eram organizados em barracos
separados uns dos outros. Isso fazia com que eu outros dois, no máximo,
dormíssemos longe da maioria do pessoal. Acontecia da turma descer para a cidade
e eu dormir sozinho naquele barraco destacado. Era tenso. Todos os meus débitos
me visitavam à noite. Eu ralhava com um por causa da amostra mal quarteada,
chamava a atenção de outro pela precisão das medidas, pedia pra pegarem água na
parte de cima do igarapé. Inúmeras vezes a onça vinha esturrar na beirada da
minha rede. Quando a peleja era com onça, eu sempre gritava, me agitava e
acordava. Nos primeiros dias meus parceiros até que tinham algum zelo comigo e
com eles (escondiam facões, a espingarda de caça, as ferramentas agudas, com
medo de serem tomados por onça faminta). Depois me largaram de mão com minhas
conversas e sustos. Com o passar do tempo, fui acostumando com minhas
realidades. Passei a externar mais meus sentimentos ao calor do dia, dei a
botar pra fora meus débitos na hora e vez com a equipe. As medidas deram algum
resultado. Continuei com os discursos durante o sono porque, tenho pra mim, não
resolvi o medo da onça e nem destrancei o punho da rede.
O
jeito foi mudar para a cama. Hoje falo pouco dormindo. O tanto daquele diálogo
necessário para tratar com as carapanãs de plantão.
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