sábado, 18 de maio de 2019

crônica da semana- o amarelinho


O Amarelinho
Ferreirão era homem grande. Forte. Talhado nas precisões da vida. Trecheiro, houve um tempo que passou uma chuva no alojamento que eu morava em Rondônia, se justificando no ofício de cozinheiro.Um teba d’um macho. Andar duro, meio vergado pra frente por causa da robusta musculatura moldada já em um corpo maduro.
Cantador. Contador de história. Bem faroleiro, diga-se. Mentiroso de não tremer um fio do bigodão que ostentava (contava direto uma história em que ele morria no fim). Não era íntimo da escrita. Mas era poeta, compositor. Encarreirava bregas apaixonados sempre que se juntava à nossa turma da cervejinha nas pândegas dos fins de semana.
E nem era de beber muito, após uns poucos goles, era tomado pela emoção, recitava versos tristes sobre amores de cabaré, cantarolava canções que ele mesmo fazia e guardava na mente, falando de fortunas conquistadas em garimpos e pulverizadas nas armadilhas de paixões passageiras. Detalhava os mergulhos que fazia no rio Madeira, o controle que tinha sobre a respiração lá embaixo e afirmava que não conhecia barranco que resistisse em pé quando ele empunhava a maraca. Revelava o medo vindo das invejas e cobiças que cerravam vidas lá embaixo, quando a mangueira de ar de um perseguido era cortada e o corpo afogado era engolido pelos rebojos que se formavam nas cachoeiras do rio.
Em outras ocasiões, em conversas mais leves, insinuava uma passagem por Belém e rolezinhos pela cidade embarcado no ônibus da linha São Brás-Jurunas. E eu, ó, só vendo o baque dele. Reinando na patranhada.
Trouxe Ferreirão para esta crônica porque ele é uma boa lembrança de Rondônia, naquele início dos anos 80. E Também, porque agora que releio “Belém do Grão-Pará”, do escritor marajoara Dalcídio Jurandir, guardando-se as devidas distâncias etárias e amarelentas, reencontro Ferreirão em Antônio, personagem do Romance que se destaca por contar causos de assombros e estranhezas.
Nota-se na narrativa que Antônio, além das fantasias, tem sim uma vivência certa e atestada. É trecheiro. Conhece os ermos e os baixões, sabe das gentes, das fortunas, sabedorias, pajelanças e das conjurações que fervilham nas beiras de rio. E olha que quando aparece na história, ninguém malda. Desnutrido, exibe uma cor amarela de criança com paludismo ou panemice, é roubado da casa em que morava de favor e passa a conviver com Alfredo, personagem em torno do qual as histórias orbitam no Romance de Dalcídio. O custo foi roubarem o Amarelinho, pra ele se equivaler ao Ferreirão em farolice e extraordinárias invencionices.
Ferreirão descrevia as miragens que tinha, sob o efeito do Mariri, nas vezes que tomava o chá, pelos caminhos de mata fechada que percorria entre Pucallpa, no Peru, e Letícia, na Colômbia.
Mais tarde, usaria o chá de Mariri regendo a espiritualidade em ritual indígena que criei para um conto que escrevi e que ganhou  até engalanada premiação. Fico cá matutando agora e dando ganho a uma impressão que se arrasta há anos. Quando escrevi uma história fantasiosa, que ganhou até concurso, tive a pretensão de me equiparar ao Ferreirão. Ao Amarelinho. Descontando, convenientemente, seus naturais em bigodões e palidezes.

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