De
cabeça para baixo
Uma
tarde dessas de tanto calor de a gente ficar com cara de pupunha, me larguei a abelhudar
minha bregueçaiada. E nessa terapia mormacenta de mexe aqui, desembrulha ali,
escacavia, vira, e torna a desvirar, encontrei um atlas daqueles antigos. Dei
uma folheada. Deitei na cama e com os braços estendidos, equilibrei o livrão
aberto nas páginas centrais. Certinho na parte que estava a imagem do
mapa-múndi. Manobrei sobre a cabeça o fascículo que era parte de uma
enciclopédia que mamãe tinha comprado e pago os olhos da cara por ela, quando
eu ainda era ginasiano, numa escola lá detrás do Bosque. Como se fosse o guidon
do carro, mantendo o equilíbrio, virei o mapa pra direita, pra esquerda, os
continentes, os oceanos se deslocando. Enrolei tudo e o mundo ficou de cabeça
pra baixo.
Larguei
o atlas de lado, pulei da cama, caminhei até a janela e procurei o Norte. Nessa
hora o tachi me pegou bem no baixo ventre e ficou, aquela dor me doendo
enquanto me via também com a outra dor da dúvida.
As
voltas que dei no mundo, subindo, descendo, pra lá e pra cá ativaram em mim a
cuíra. Desconfiar das representações é o caminho para confirmar regras,
consagrar verdades, desmascarar mentiras, deixar de ser arrogante e deixar
também, de ser besta.
Nem
desconfiei do Norte enquanto uma manifestação da natureza. Enquanto um
componente polar de um sistema magnético. E nem do fato dele ser um lugar
definido. Um ponto coordenado geograficamente. O que me levou à suspeita, foi esta
representação do Norte ser na parte de cima do mapa. Desta soberba espacial, cismei.
Quando
enrolei todo o volante do meu atlas e pus o mapa-múndi de cabeça para baixo, validei
o aprendizado que guardei do filme “2001: uma odisséia no espaço”. Não há uma
condição, uma posição real que possamos assumir ser considerada como de cabeça
para cima, de cabeça para baixo ou para os lados. Tudo é uma representação e
uma defesa de interesses.
O
filme tem uma cena em que uma tripulante caminha pela nave. Em determinado
momento surge uma parede na frente dela e ela sem o menor esforço ajusta o
passo e continua a caminhar sobre a superfície da parede. Pra gente que
assistia parecia que ela estava de lado. Mais a frente, outra parede e um
pequeno corredor. Novamente ela ajeita a passada. Do ângulo da filmagem,
parecia que ela caminhava de cabeça para baixo. À saída do corredor, o plano de
filmagem é modificado e a moça parece estar andando normal de cabeça pra cima
de novo (lembrem que ela entra no corredor de cabeça pra baixo). O recado para
mim, da sequência, é aquele já aviado e exposto. A posição no espaço estabelece
a importância da cena. As inspirações que provocam as imagens são ditadas pelo
ponto de vista de quem produz a representação.
O
Norte poderia muito bem ser representado na parte de baixo do mapa-múndi. Mas
isso traria os Estados Unidos, a Rússia e toda a Europa para o pé da página.
Enquanto levaria ao topo a África, a América do sul e mais à cimeira e à
esquerda, a Nova Zelândia.
Voltei
a equilibrar o atlas, na cama, com os braços esticados sobre a cabeça. E o
explorei todinho virado ao contrário.
Fazia
um malabarismo danado em manobras para virar as páginas, coçar a ferrada de
tachi e entender de outro jeito as figuras, as dores da dúvida. E naquele calor
de correr doido.
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