Os
médicos da baixada
O
lugar era um abandono só, com imensos lagos formados no meio da rua desde a
saída do asfalto, lá em cima, e que se estendiam até o bairro vizinho da
Sacramenta, sendo que dali pra frente eram entremeados de pontes estivadas cheias
de falhas e inseguras. Não havia calçada e a frente das casas era tomada por
férteis capinzais, inclusive ricos daquela espécie que a garotada usava como
pequenas flechas, nas brincadeiras de final de tarde. À noite, a sinfonia era a
dos sapos. No inverno, as casas eram visitadas por cobras gigantescas e jacarés
silenciosos. A vida era uma aventura diária. Nosso lar ia ao fundo, a água e as
imundícies invadiam as residências e traziam chamichugas e diarréias à rotina da
molecada.
Um
dia, à margem de um dos maiores buracos da rua, daqueles que pra passar um
carro, o motorista tinha que usar de toda perícia em manobras beirando o
batente das casas, um pequeno prédio começou a ser erguido, e antes que a
construção se realizasse por completo, com três compartimentos acanhados
construídos, uma placa subiu na fachada: Consultório Médico da Baixada.
Revezando os doutores e as doutoras, diariamente, o atendimento iniciou logo e
daqui pra’li se formou uma legião de pacientes em busca das melhoras.
(Antes
disso, já havia no bairro, o dentista de 10 Reais. Ocupava um prédio no
asfalto, na parte nobre do bairro. Era um dentista negro. O primeiro e único
que conheci em toda a minha vida. A molecada da minha rua era a pri na fila de
atendimento. Quando descobriu o consultório popular, tratou de fechar as
panelas que só cresciam, naquela região frágil dos molares e dos pré-molares. Era
comum, também, naquela época, os dentes da frente, escurecerem na fronteira entre
um e outro e sofrerem corrosão ambos. Era o famoso ‘dente furado’, um mal muito
comum entre os adolescentes, e responsável por aquela geração de banguelas estilo traves sem goleiro da minha rua. O
sorriso que o doutor de 10 Reais conseguia salvar, salvava. Aquele que não, ia
direto para a implantação de uma chapa, pra dar uma forra pros pequenos. Ele
mesmo encaminhava prum protético baratinho. Durou pouco, o dentista de dez
reais. Uma coisinha assim a mais que a primeira dentição. Deixou o bairro, mas
recuperou a auto-estima de um feixe assim, ó, de jovens que, antes dele, sorriam
envergonhados com os beiços apertados).
Os
médicos da baixada estão lá. Ampliaram o prédio, instalaram laboratórios para
exames de rotina, um pequeno ambulatório, renovaram o quadro. Os mais
experientes trazem na bagagem o apoio a famílias inteiras. Na minha família, do
mais pequenininho até a minha avó octogenária, todos se valeram dos cuidados daquelas
pessoas.
O
asfalto maquiou a baixada, e os postes de luz iluminaram os escondidos. O tempo
atenuou alguns sacrifícios, mas não eliminou as doenças da pobreza, não acabou
com os males da fome e da parca educação. Não aplacou o oportunismo das chamichugas.
Os médicos, ainda estão na baixada . Na luta diária.
As
cobras e jacarés, quando chove, ainda aparecem. Mais aquelas de grandes. Mais
assim, assim, de silenciosos.
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