Arroz
integral com chicória
Um
filme vai rodando na minha cabeça enquanto vigio aquela porção de arroz que
está no molho de ontem pra hoje. A ansiedade é controlada, a expectativa é
medida, naquele rito paciente de hidratação. E o filme em quadros velozes de
milesegundos pra menos, desliza na tela submissa da minha memória.
(As
passagens alegres de amigos diversos, os beijos escondidos de quintais, a
verruga sangrando que nunca sarava. O estrepe no pé, o golpe beiçudo, o tempo
cinza com cara de que vai chover já já).
O
arroz integral tem aquela cor sujinha, como se fosse catado e esfregado no
terreiro. Repousa sob um tanto de água desde ontem e o tec tec da memória passa
e repassa lembranças. Acho que é bom estender os braços sobre a mesa, descansar
a cabeça mesmo sem conforto, apoiada na cava do ombro e, sem perder o silêncio
da terrina do arroz de vista, sonhar de olho aberto.
(Bicicleta
desembestada no prumo do igarapé do Zé. Te ajeita, menino, passa um talquinho e
vem pro alpendre apreciar o movimento da tarde. Come e te conforma. Dorme,
dorme, te aquieta que a fome passa. O turvo dos dias ameaçam o presente.
Retrohistória sem luz. Blecautes de razão. Homem ao mar de horrores. O moleque malino
saindo lá detrás pra chutar a canela do coleguinha cá na frente. Humilhação e
pobreza. Coroa de espinhos no dedo mindinho. Alicate aparando as unhas.
Intolerância com o outro. Inveja. Torpeza).
“O
arroz integral diminui os problemas intestinais. Melhora o metabolismo da glicose
nos diabéticos. Protege o sistema nervoso devido à vitamina B1, aumenta a
saciedade.”
Quando
sai da terrina e vai ao fogo, o arroz integral cresce em conceito e
propriedades. Depois de pronto, uma colher das de sopa, basta para garantir um
cumê de sustância. Parece que a gente comeu um alqueire todinho naquela colherada.
Mas
ainda não é tempo. A hidratação ajuda no cozimento, catalisa o ponto al dente.
Enquanto não se embebeda de funções e qualidades úmidas, a porção dentro da
terrina é por mim velada com carinho e atenção.
(Recortes
controversos de saudade. Amigos mortos. Amigos desaparecidos. Gente estúpida do
faz de conta. Gente que brilha e se alia. Cenas desconcertantes se desdobram.
Em amor. Mamãe. Cidadã que criou 4 filhos que se estranham, que se arranham.
Não são vossos filhos. São filhos e filhas da ânsia louca, do delírio santo, do
estresse vivo. Do desvelo e das tristes descobertas de sarjeta e de bancos de
praça abandonados à sorte da noite. Amigos sumidos. Irmãos sozinhos).
Houve
de por agora, eu abandonar o arroz limpinho, brilhosinho, o arroz branco polido
e me bandear para o arroz integral sujinho. É hora de experimentações
subordinadas aos vereditos da natureza. O tempo é de cautela. É a vez de
desopilar o humor, de enfrentar insanidades com a razão e um maço de chicória.
Enquanto
não recuperamos o tino; até que tornemos do mitológico reino de Hades, até que
desçam os letreiros, acendam-se as luzes e até que acabe o filme que passa na
minha cabeça, a porção de arroz integral dentro da terrina é por mim velada com
espanto e apreensão.
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