sábado, 3 de novembro de 2018

crônica da semana- arroz integral


Arroz integral com chicória
Um filme vai rodando na minha cabeça enquanto vigio aquela porção de arroz que está no molho de ontem pra hoje. A ansiedade é controlada, a expectativa é medida, naquele rito paciente de hidratação. E o filme em quadros velozes de milesegundos pra menos, desliza na tela submissa da minha memória.
(As passagens alegres de amigos diversos, os beijos escondidos de quintais, a verruga sangrando que nunca sarava. O estrepe no pé, o golpe beiçudo, o tempo cinza com cara de que vai chover já já).
O arroz integral tem aquela cor sujinha, como se fosse catado e esfregado no terreiro. Repousa sob um tanto de água desde ontem e o tec tec da memória passa e repassa lembranças. Acho que é bom estender os braços sobre a mesa, descansar a cabeça mesmo sem conforto, apoiada na cava do ombro e, sem perder o silêncio da terrina do arroz de vista, sonhar de olho aberto.
(Bicicleta desembestada no prumo do igarapé do Zé. Te ajeita, menino, passa um talquinho e vem pro alpendre apreciar o movimento da tarde. Come e te conforma. Dorme, dorme, te aquieta que a fome passa. O turvo dos dias ameaçam o presente. Retrohistória sem luz. Blecautes de razão. Homem ao mar de horrores. O moleque malino saindo lá detrás pra chutar a canela do coleguinha cá na frente. Humilhação e pobreza. Coroa de espinhos no dedo mindinho. Alicate aparando as unhas. Intolerância com o outro. Inveja. Torpeza).
“O arroz integral diminui os problemas intestinais. Melhora o metabolismo da glicose nos diabéticos. Protege o sistema nervoso devido à vitamina B1, aumenta a saciedade.”
Quando sai da terrina e vai ao fogo, o arroz integral cresce em conceito e propriedades. Depois de pronto, uma colher das de sopa, basta para garantir um cumê de sustância. Parece que a gente comeu um alqueire todinho naquela colherada.
Mas ainda não é tempo. A hidratação ajuda no cozimento, catalisa o ponto al dente. Enquanto não se embebeda de funções e qualidades úmidas, a porção dentro da terrina é por mim velada com carinho e atenção.
(Recortes controversos de saudade. Amigos mortos. Amigos desaparecidos. Gente estúpida do faz de conta. Gente que brilha e se alia. Cenas desconcertantes se desdobram. Em amor. Mamãe. Cidadã que criou 4 filhos que se estranham, que se arranham. Não são vossos filhos. São filhos e filhas da ânsia louca, do delírio santo, do estresse vivo. Do desvelo e das tristes descobertas de sarjeta e de bancos de praça abandonados à sorte da noite. Amigos sumidos. Irmãos sozinhos).
Houve de por agora, eu abandonar o arroz limpinho, brilhosinho, o arroz branco polido e me bandear para o arroz integral sujinho. É hora de experimentações subordinadas aos vereditos da natureza. O tempo é de cautela. É a vez de desopilar o humor, de enfrentar insanidades com a razão e um maço de chicória.
Enquanto não recuperamos o tino; até que tornemos do mitológico reino de Hades, até que desçam os letreiros, acendam-se as luzes e até que acabe o filme que passa na minha cabeça, a porção de arroz integral dentro da terrina é por mim velada com espanto e apreensão.


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