A
perereca sapeca
Mesmo
que a gente seja alheia à pesquisa, tenha horror a uma consulta rapidola ou que
despreze qualquer informação mais aplicada e objetiva, não tem escapatória. Ao
nos depararmos com aquele bichinho de pernas finas e longas, de fácil fixação
nas paredes; ao perceber aqueles olhões esbugalhados, e tanta agilidade nos
saltos, instintivamente, admitimos se tratar de uma perereca.
O
susto abona a definição taxonômica. Toda vez que encontrava uma em casa, não
pensava ser sapo ou rã. A espécie que me ocorria enfrentar em longas tentativas
de devolução ao seu habitat, era a perereca.
Não
tivesse eu uma necessidade qualquer de abrir aquele armarinho que ficava
embaixo da pia, não nos toparíamos. Um lugar escuro, úmido, de vez em vez a
companhia de um barulhinho familiar de água correndo, era um ambiente agradável
para a bichinha. Deixa estar que, foi-não-foi era um susto e um salto.
Morava
na Vila dos Cabanos, lugar que tinha uma concepção urbana, à época, ainda
tolerante com áreas verdes e uma população animal diversa. Era comum, nossa
casa ser visitada por camaleão, cobras, pequenos roedores, e toda a linhagem de
anfíbios. Na maioria das vezes as visitas ficavam do lado de fora, pelo
quintal, no alpendre. Só a apresentada da perereca é que ousava uma intimidade.
A
cada encontro, uma luta para convencer a zoiuda a voltar para a casa dela. Era
uma peleja. Usava de vários artifícios. Fazia menções, batia palma. Gritava uhuu!
Mas, à menor aproximação, a perereca se desviava com um salto espetacular. Se
pregava no fundo de uma prateleira, atrás da porta. Até que desaparecia num
estratégico e insondável esconderijo. Eu sempre desistia. Deixava pra lá.
Aceitava aquela convivência conflituosa e gosmentinha.
Um
dia, sem que a malícia me acometesse. Num indiscutível acaso, flagrei a
bichinha saindo de casa. Estava ao pé da porta, aquele corpo esverdeado.
Esticou as pernas, vergou o dorso, foi se ajeitando, se arrastando. Se
espremendo contra o chão. Passou a metade do corpo. Fiquei só observando aquele
contorcionismo. A outra metade, que ainda ficou para dentro de casa, foi se
adelgaçando, se esticando, até que foi deslizando pela fresta da porta, para
fora em silêncio e sem traumas. Uma frustração me abateu. Tantas vezes, abri
toda a casa, dando várias opções para que a perereca se escafedesse. Estimulei,
Incentivei com palavras pouco simpáticas. E ela preferiu sair naquela situação
desafiadora, de apertos e deselegantes adelgaçamentos abdominais.
Este
desfecho aconteceu, penso eu, outras vezes, sem meu testemunho. Foram muitas
visitas. Não eram, obviamente, os mesmos indivíduos (morei mais de quinze anos
na mesma casa e acho que nem a luta diária contra os predadores, nem as
agressões urbanas, garantiam tanta longevidade às pererecas). Estava na natureza
delas que, no mesmo repente que apareciam e causavam um rebuliço em casa,
espremiam-se sob a porta e desapareciam.
A
perereca sapeca é uma unidade contestadora, um ensinamento. Estabelece e
fortalece o instinto e me estimula a acreditar que o susto pode ser superado e
reinterpretado.
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