sábado, 17 de novembro de 2018

crônica da semana - camisa de onze varas


Camisa de onze varas
Lembro benzinho da minha avó ralhando com um pequeno da rua, que malandrava debaixo do pé de acácia e, enxerido que só ele, soltava gracinhas e saliências para as alunas do Donatila: “olha, rapaz, tu ainda vais te meter numa camisa de onze varas”, vovó dizia.
Virava e revirava os ticos e tecos do cocuruto imaginando como seria uma camisa de onze varas. (Tempos depois, andando por essas matas, conheci algumas artes. Tapiris, mutás, pinguelas, jiraus. Mas não eram camisas e também, bem contadinhas, via-se que eram obras tecidas com bem mais que onze varas).
Daí que tirando dum lado e pondo noutro, cascavilhando aqui, e assuntando ali, deduzi que não se tratava de peça do vestuário, o alerta de minha avó. O recado era uma previsão de apertos futuros, de enrascadas, encalacres e perigos certos.
Anos além dos presságios de vovó, estamos caminhando para nos metermos nesta camisa. E se nada for feito, vamos ficar tesos sem nos mexer, sem rir, sem falar. A clara intenção de transformar a educação em experiências realizadas no ermo, na solidão, pode gerar uma linhagem fria, apatetada, empombalecida; uma legião de estudantes insossos.
O que dizer de uma geração que não vai saber, nem entender o quanto de superação tem o ato de, no silêncio de uma compenetrada aula de cópia, levantar e, animado por uma força inexplicável, quebrar a concentração de todos e pedir à professora para ir ao banheiro.
A segurança para atitudes ousadas assim, a vitória sobre o ensimesmamento e a timidez vêm das parcerias. Cresce com a convivência. A energia para formar dentro da gente controles e poderes, vem do meio da nossa galerinha. Sempre tem um ou dois que estão ali, dando aquela força.
O que dizer de uma geração que não vai saber, nem entender o quanto espetacularmente delicioso é, na hora que todos olham para o quadro tentando decorar o roteiro das contas de arme e efetue, desviar o olhar e mirar apaixonadamente a coleguinha ou o coleguinha do lado.
O amor nasce desse emaranhamento de personalidades. As amizades se criam no ninho de estilos, de calibres, de humores diferentes.
O que dizer de uma geração que não vai saber, não vai entender o que significa dividir um sanduíche de 'mortandela', partilhar um lanchinho que mal dá pra um; misturar vários tipos de sucos, refrigerantes, num só copo e beber de gute-gute. O que dizer de uma geração que não vai dar aquela fugidinha até o portão para comprar uma intera de chope e unha ou pastel de vento; como pensar no futuro de uma criança que não vai experimentar um sanduíche de banana ou achar normal a pergunta “o que é isso?”, e a seguir o rogo “me dá um pedaço”. O que dizer de uma geração que não vai se alegrar com a campa anunciando a hora do recreio.
Educação à distância não ativa a solidariedade, nega o florescer da generosidade, sufoca o companheirismo. Suprime experimentações gastronômicas. Propõe uma geração de robozinhos egoístas, arrasta nossos filhos para dentro de um eu solitário e derrotado. Como advertiu minha avó, admitir este tipo de futuro é socar-se dentro de uma camisa de onze varas.



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