sexta-feira, 31 de agosto de 2018

crônica da semana - refugiados


Refugiados
Raimundinho veio do Xapuri, desceu no Ver-o-Peso e foi morar na Pedreira, com a família.
O casal Charlote e Thomas desembarcou ainda no oceano. A mais de duzentos quilômetros da costa. Achavam que estariam mais perto do oriente, para recordar a terra natal. Viveriam a vida toda de saudades.
Ernest, Astrid, Edwiges, Andrews e a turma do baralho, nas noites eternas da viagem, apostaram na península. Acordaram as crianças, vestiram-nas com linhos finos e desceram para aquela ponta de terra com os olhos vidrados de sono e com a boca seca. Logo nos primeiros passos, além do banco de areia, achariam água doce para aliviar-lhes a sede.
Os rapazes Thog e Mendelson, juntaram-se a multidão que ficou no estuário. Equilibravam-se no trapiche, na hora do desembarque, revezando os cuidados com a bagagem e a pequenina Diva, uma cachorrinha doce de barbicha acutilada e branca. Quando pisaram em terra, deram-se as mãos, beijaram-se e deixaram a Pincher explorar os entornos do futuro.
Raimundinho sentiu o vento, consultou o coração e foi morar na Pedreira com a família.
Muitos seguiram em frente. Subiram o rio em busca de ouro, prata, balata, terra boa e roxa; uma temperatura mais branda, látex, ervas e baunilha. O verde da floresta, o infinito das águas e céus. Cruzaram tratados e subverteram ordens.
Hannah, Heidi, Herman, Oliver e Dylan ainda dançam no convés. Dia e noite sem parar. Trazem a alegria impregnada nos corpos vermelhos de tanto sol e nas mentes crivadas de generosidade. Formam uma irmandade, uma rede de recepção, de acolhimento. Sobem e descem o rio em todos os sonhos, em todas as vontades, em todos os transes. Embalam de cantos e danças a aventura de viver. De meando em meandro. De meandro em meandro.
Benedito, Chaves, Juan, Aloch, joiel, Brandt e ainda Ketô formam o grupo místico que se lançou às montanhas. Lá onde nenhum navio, nenhum barco ou canoa simples consegue chegar. É um lugar alto e frio, que transforma o grande rio num filete de água cristalina. Lá de cima miram vales, serpenteio de canais, aves baixas, verdes densos. Divisam limites e barreiras impostas pelos costumes humanos. Percebem sons secos, vapores ancestrais, pontes de recomeços. Há chance. Uma remota chance, logo abaixo do céu.
Lá de cima o que se vê é que o espaço não é marcado, não tem divisórias, nem trancas à chave, nem arames pontiagudos, nem políticas excludentes.
O que se avista lá embaixo mesmo são conceitos impostos pelos assustadores costumes humanos.
Alguns preferiram as ilhas vulcânicas por causa da sensação de proximidade com a pátria amada. Outros deram com a península e reinventaram a história. Uma multidão aventurou-se pelas margens, em busca de riquezas. Um grupo, além de qualquer compreensão, dança, por séculos, animando sonhos. Das montanhas, a transcendência e a miragem nos alertam dos falsos caminhos e das fraquezas humanas. E admitem milagres (uma remota chance).
De meandro em meandro, uma ponte de recomeços, um quê de generosidade.
Raimundinho veio do Acre, desceu no Ver-o-Peso e foi morar na Pedreira, com a família.
Éramos todos refugiados.


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