sábado, 5 de maio de 2018

crônica da semana - trabalho girando torto


Girando torto
Mais de uma vez expressei aqui minha preferência pelo dia primeiro de maio ser reconhecido como dia do trabalho. Não se trata de reduzir a importância de valorosos companheiros. É que penso ser o trabalho, algo sagrado, um dom que marca a espécie. Tenho pra mim, que não é um atributo personalizado. É uma propriedade do ser humano. Tem a ver com o polegar opositor, com o telencéfalo desenvolvido, com a capacidade de criar coletivamente. Esta visão, este entendimento sobre o trabalho creio ser o nosso maior prazer. É também a nossa grande dor. Porque quando nos vemos alienados de exercer qualquer arte da oficina humana, o mundo gira torto, o céu desaba, as luzes se apagam. O chão desaparece e a gente flutua sem rumo.
Sem trabalho, já dizia Gonzaguinha, “o homem se morre”.
Quando saí da Escola Técnica, tirei seis anos direto trabalhando. Comecei em Rondônia, de lá saí para outro emprego em Altamira. Sem intervalo. Dei baixa na carteira num dia, no outro já estava assinada de novo. Foi um aprendizado, o novo trabalho dirigido à barragem. Mais ainda porque, nele, percebi a alteração dos humores de governos, as conveniências de conjunturas e as consequências de oportunismos políticos. O encaixe dessas peças, resultou na minha primeira experiência como desempregado.
E deu-se de uma forma dramática. Demissão em massa. Em porções salteadas. No meu segundo ano, estávamos ainda na pesquisa de viabilidade para a barragem de Belo Monte e um grande corte levou a metade do efetivo. Ficamos respirando por aparelhos. Sem campanhas, sem serviços aprovados. Só arfando. Um ano depois, estava com minha equipe em acampamento próximo da Transamazônica, cumprindo atividades alternativas, de raspas de orçamento, quando recebi um rádio com as orientações: “desce todo mundo e com todas as tralhas”. Não tenho recordação de ter me sentido tão mal, em outras ocasiões, como naquele dia. Eu tinha que me fazer de durão, mas meu coração chorava por dentro em pensar naqueles trinta e poucos companheiros com quem dividi meus dias por quase três anos, voltando para um mundo sem expectativas. Sem profissão definida, com estudo pouco, mas com habilidades extraordinárias para as tarefas que desenvolviam mata à dentro. Uma tristeza só. E por mim, também, que voltava para casa depois de anos empregado. O choque foi tão grande que, mesmo entendendo que eu perdia meu trabalho, junto com todos os outros companheiros, me sentia culpado. E de tal jeito que quando cheguei em casa, o que me ocorreu foi pedir desculpas pra mamãe, deitar no colo dela e chorar. Até tornar, demorou. Passei dias girando torto com o mundo.
Desde lá, das cavernas, quando polimos a pedra e criamos uma tecnologia de sobrevivência, nos descobrimos modificadores, modeladores da natureza. Um poder divino nos envolveu. Mudamos o mundo com o nosso trabalho. Alcançamos o infinito, mergulhamos no absolutamente pequeno. Dominamos o frio e o escuro.
O Brasil ostenta hoje um exército de quase 15 milhões de pessoas sem direto ao sagrado trabalho. É a divindade girando torto. É o homem sem trabalho, se morrendo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário