Girando
torto
Mais
de uma vez expressei aqui minha preferência pelo dia primeiro de maio ser
reconhecido como dia do trabalho. Não se trata de reduzir a importância de
valorosos companheiros. É que penso ser o trabalho, algo sagrado, um dom que
marca a espécie. Tenho pra mim, que não é um atributo personalizado. É uma
propriedade do ser humano. Tem a ver com o polegar opositor, com o telencéfalo
desenvolvido, com a capacidade de criar coletivamente. Esta visão, este entendimento
sobre o trabalho creio ser o nosso maior prazer. É também a nossa grande dor.
Porque quando nos vemos alienados de exercer qualquer arte da oficina humana, o
mundo gira torto, o céu desaba, as luzes se apagam. O chão desaparece e a gente
flutua sem rumo.
Sem
trabalho, já dizia Gonzaguinha, “o homem se morre”.
Quando
saí da Escola Técnica, tirei seis anos direto trabalhando. Comecei em Rondônia,
de lá saí para outro emprego em Altamira. Sem intervalo. Dei baixa na carteira
num dia, no outro já estava assinada de novo. Foi um aprendizado, o novo
trabalho dirigido à barragem. Mais ainda porque, nele, percebi a alteração dos
humores de governos, as conveniências de conjunturas e as consequências de
oportunismos políticos. O encaixe dessas peças, resultou na minha primeira
experiência como desempregado.
E
deu-se de uma forma dramática. Demissão em massa. Em porções salteadas. No meu
segundo ano, estávamos ainda na pesquisa de viabilidade para a barragem de Belo
Monte e um grande corte levou a metade do efetivo. Ficamos respirando por
aparelhos. Sem campanhas, sem serviços aprovados. Só arfando. Um ano depois,
estava com minha equipe em acampamento próximo da Transamazônica, cumprindo
atividades alternativas, de raspas de orçamento, quando recebi um rádio com as
orientações: “desce todo mundo e com todas as tralhas”. Não tenho recordação de
ter me sentido tão mal, em outras ocasiões, como naquele dia. Eu tinha que me
fazer de durão, mas meu coração chorava por dentro em pensar naqueles trinta e
poucos companheiros com quem dividi meus dias por quase três anos, voltando
para um mundo sem expectativas. Sem profissão definida, com estudo pouco, mas
com habilidades extraordinárias para as tarefas que desenvolviam mata à dentro.
Uma tristeza só. E por mim, também, que voltava para casa depois de anos
empregado. O choque foi tão grande que, mesmo entendendo que eu perdia meu
trabalho, junto com todos os outros companheiros, me sentia culpado. E de tal
jeito que quando cheguei em casa, o que me ocorreu foi pedir desculpas pra
mamãe, deitar no colo dela e chorar. Até tornar, demorou. Passei dias girando
torto com o mundo.
Desde
lá, das cavernas, quando polimos a pedra e criamos uma tecnologia de
sobrevivência, nos descobrimos modificadores, modeladores da natureza. Um poder
divino nos envolveu. Mudamos o mundo com o nosso trabalho. Alcançamos o
infinito, mergulhamos no absolutamente pequeno. Dominamos o frio e o escuro.
O
Brasil ostenta hoje um exército de quase 15 milhões de pessoas sem direto ao sagrado
trabalho. É a divindade girando torto. É o homem sem trabalho, se morrendo.
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