sábado, 26 de maio de 2018

crônica da semana - natal de esquina


Natal de esquina
Tenho lido uma produção paraense que vai ali no rumo das biografias e observo coincidências, pontos de partida comuns. Tanto na área da política, como percebi no livro de Ismael Machado, sobre a trajetória do deputado Paulo Fonteles; quanto no campo das artes, como pude ver no relato de criação e preservação do Grupo Gruta de Teatro, no contar detalhado de Adriano Barroso. Há uma origem onde as duas histórias se entrelaçam. O embrião da idéia ou da conduta, senão no todo, pelo menos em boa parte teve a genealogia forjada dentro da igreja Católica.
Citei correlações que encontrei em dois livros que li recentemente, mas prestando atenção em tantas histórias que ouço, em casos vividos de pessoas próximas, encontro lá atrás no tempo, nosso ancestral sócio-educativo comum. O teatro realizado nos grupos de igreja.
Aconteceu com minha turma na Escolsa Salesiana. Grupo de jovem é algo alucinante. Muita energia, muita vontade. A moçada se mete em tudo. Comanda a missa. Faz torneio de futebol, elabora tabelas, bate o escanteio e cabeceia. Tem o Círio, a galera comanda uma procissão, uma novena. Tá na pira de grana, ajeita uma feijoada para patrocinar os encontros de formação. Inventa festival de sorvete, de música. Em tudo em quanto, o jovem empenha seu charme. Sem ser ator, faz teatro.
O caminho é o mesmo. Atravessa gerações. A minha geração veio depois de uma moçada da pesada que sairia da Escola para formar o Grupo Hera da Terra, uns; e para militar, de vera, na política, outros. Marcaram época. Começaram também no entusiasmo do calendário religioso. Peças de Natal. De Páscoa. Quando cheguei na Escola, ouvia histórias das conquistas deles. Até que ousaram. Traspassaram o senso e os padrões pastorais. A ditadura andava por perto. O fazer teatral começou a incomodar na linguagem, nas expressões corporais, nas roupas, nos arroubos e espalhafatos. Deram tiau.
Na minha vez, o passo atrás havia sido dado. Começamos tudo de novo. Recorremos ao ‘Natal de Esquina’, que era uma peça conforme, quietinha, escrita por um padre, como salvo-conduto para sobrevivermos à entressafra de insubordinações. Mas foi só o padre afrouxar o laço e encenamos um jogral “Pão, saúde, vida de gente”, que tinha um andamento ainda juvenil, mas era só pra dizer. No fundo, tinha pretensões. Bulia com o latifúndio, com os dramas urbanos. Era um feixe de provocações. Na Páscoa, fizemos outro jogral, uma “Paixão” em que o nosso Jesus seria crucificado de cabeça para baixo (a valência do ator que interpretava o Cristo, é que esbarramos nas limitações da contrarregragem). Alguém que viu, sinalizou: parece “Morte e Vida Severina”. Foi batata! No fim do ano, tiramos de cena o “Natal de Esquina” e montamos o auto de João Cabral. Novidade e sucesso total.  Depois disso, novas idéias foram surgindo. Textos mais modernos foram aparecendo, muitos com uma pitada de concupiscência, atrevimentos, palavras do vulgo, essas coisas... Aí já viu. Os olhos azuis do padre Lourenço faiscaram. Entendemos. Mesmo amando a Escola e o Lourenço, fomos cantar em outra freguesia.
Cai o pano.





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