quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

crônica da semana - sonho de carnaval parte II

Sonho de carnaval parte II
Tempos atrás, ainda quando este caderno se chamava Cartaz, escrevi a crônica “Sonho de carnaval”, que agora, pelos dias de hoje, tirando a prova dos nove e a contraprova das eras, seria a dita parte I de uma sequência inata. Naquelas linhas que tracei, aninhado à saudosa tranquilidade interiorana da Vila dos Cabanos, que nos permitia dormir de janela aberta e com o botijão de gás acomodado seguro e íntegro no lado de fora da casa, adiantava que meus sonhos de carnaval seriam um desfile sob os holofotes da Aldeia Cabana e o bailado gingado com uma morena, malandramente paramentado com minha fantasia de passista: sapato branco purpurinado, camisa listrada e um chapéu Panamá de fitas vermelhas largas.
O que torna é que nem realizei minha vontade.
Hoje depois do caso passado, abandonei os delírios e meus desejos são mais modestos. A mim me basta um arrastão de sujo com uma fieira de banheiros públicos pelo caminho, porque olha, brincar carnaval de rua sem ter lugar para as devidas desobrigas não tem combate. É malinar na certa com a gente e com a cidade.
Aprecio o carnaval de rua. Desde o tempo do ‘Aguenta o Tombo’ eu me assanho em caminhadas quilométricas como folião dos mais animados. A mim me agrada a pândega, o gracejo despretensioso, o samba dançado com liberdade, o desapego a rixas ou competições dos desfiles oficiais. Na rua, o que vale é a diversão. Vale tudo que anime. Vale a soltura. Vale tirar sarro com o mascarado bofó. Vale voar. Só não vale a apatia. O negócio é que o povo bebe. Aí já viu. Algo deve ser providenciado.
Sei da história trágica do príncipe Tycho Brahe que morreu de complicações fisiológicas por prender o xixi. Ele foi parceiro de Kepler na formulação da harmonia cósmica. Ajudou o gênio alemão naquelas questões bobas, como dinheiro para se manter, por exemplo. E com a mesma gentileza, dividiu horas dos muitos anos que passaram juntos, observando o comportamento do planeta Marte.  O movimento do planeta vermelho, de tempos e tempos, aumentando e diminuindo de tamanho é que deu a dica para Kepler deduzir a trajetória elíptica dos planetas ao redor do Sol. A famosa Primeira Lei de Kepler.
Pois não é que o príncipe, detonado que era, feliz da vida por partilhar das conquistas de Kepler, fez uma senhora farra na ilha que governava. Convidou uma legião de nobres não menos fanfarrões, sentou-se à mesa em posição de destaque e se danou a comer e beber. Tão interessado e, literalmente, inebriado estava por aquele momento, que o príncipe Tycho se recusava a levantar para aliviar a bexiga. Morreu de dor de urina.
No carnaval de rua cabe uma fantasia de príncipe, um destempero fugaz, uma euforia de momento: vênias mundanas argumentadas por uma gelada aqui, outra ali. Deste prazer de rua, não tenho bronca nenhuma. Faz parte. Está no DNA do sapiens, a síntese da alegria, do conforto. O baticundum do tambor potencializa as nossas químicas naturais. E, príncipes das avenidas, nos permitimos travessuras. Entusiasmos. Fidelidade a cada instante de contentamento e gozo. Mas se pintar aquela dorzinha, convém se bater pelo provimento da demanda. A fisiologia da alegria pode dar em tristeza.
Aprecio o carnaval de rua. Já tive sonhos ousados para as noites de folia. Imaginei luzes coloridas, confetes, serpentinas aos montes. Uma morena deste tamanho de par comigo num bailado elegante ante a platéia da Aldeia Cabana. Hoje, menos, menos. A simplicidade das ruas já me satisfaz. Mas pera! Algo deve ser providenciado. Os príncipes, os pés das mangueiras seculares e as fachadas coloniais da Cidade Velha agradecem.


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