O campo dos sonhos
Caminhando pela Visconde de Inhaúma, partindo
da Lomas Valentinas, no sentido da Doutor Freitas, aos poucos vou
reconstituindo uma geografia sentimental. À direita, pouca coisa mudou. O
conjunto residencial dos militares sempre existiu sob a proteção dos muros e
das divisas. Do lado esquerdo, o traçado suburbano. Casas modestas com
cobertura de zinco corroído ou de palhas vincadas sintetizam a estética da
periferia, a arquitetura das margens. Mangueira portentosa no terreiro à frente.
‘Chagão’ estirado, anunciando lá no fundo, uma vila de casas geminadas.
Cachorro enfezado atrás do portão de estacas farpadas.
A Visconde é larga... Naquele tempo não tinha
asfalto, mas assentava-se a rua sobre terreno de piçarra seco e duro. Moleques,
fazíamos o trajeto em várias e divertidas modalidades: beirando as casas
modestas, mexendo com os cachorros e saindo em desabalada. Batendo bola de uma
margem da rua à outra, numa evolução controlando ao mesmo tempo, velocidade e
domínio da pelota. Em outras ocasiões, nos largávamos à aventura. Juntávamos as
moedas para o aluguel de bicicletas. Era comum, pelas redondezas, oficinas que
alugavam bicicletas para a molecada. A gente pegava as mais pirentas, só para
‘esmerilar’ mais. E era cada exemplar. Sem pedal, sem freio, sem o selim, só
com o varão. Pneus com câmaras expostas. Era um verdadeiro rali, aquela ruma de
moleques com suas máquinas mortinhas, fazendo e acontecendo. Em todas as
modalidades, o destino era sempre o Areal.
Era um terreno imenso, traçado em planície de
areia branquinha que começava nas imediações da Pirajá e ia dar na biqueira da
Doutor Freitas. Plano, ventilado. Livre, desimpedido. Tapete estendido para os
garotos da periferia. O campo dos nossos sonhos.
Nas tardes de sábado, o Areal recebia dezenas,
centenas de meninos com fome de bola. A organização de dava sem muitos
esforços, a língua da diversão era falada com desenvoltura e gentileza. Os
campos eram demarcados virtualmente, respeitando a divisão possível e
impossível. Embates eram travados entre estudantes das mesmas escolas, mas de
turmas diferentes; time do lado de cá da rua contra o time do lado de lá;
Passagem do Arame confrontando a passagem Itamarati. Time com camisa versus
time sem camisa. Cabia todo mundo. O único limite era a linha de fundo. Não
havia limites laterais. Se o lance migrasse para o outro jogo, do lado, crise
não havia. Licenças eram dadas, espaços eram criados. Às vezes até os times que
tinham o campo invadido paravam o jogo e assistiam à peleja dos intrometidos se
definir.
Aquele mundo de moleques, aquela ruma de
bolas sendo alçadas daqui pra’colá, as chinelas marcando as travinhas, os
suores e os cordões de sujo no pescoço eram cenas e ornamentos que se
adiantavam nas horas. Só quando sol caía no horizonte e as cigarras se animavam
em cantorias é que as primeiras partidas eram encerradas e os times começavam a
diáspora.
Caminhando pela Visconde, me avio
reconstituindo minha geografia sentimental. E o que fazem hoje, nas tardes de
sábado, os garotos que têm fome de tudo e de bola?
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