Na
boca da boiúna (crônica dedicada a Eduardo Costa)
“Lugar
que tem pouco cachorro, desconfie.”
Tinha
cinco cabeças de gado. Tirava leite bom todo dia. Enchia os baldes,
transportava, reunia a família, fazia uma empreitada, distribuía o leite em
garrafas de vidro de um litro, e depois deixava de casa em casa, na currutela
próxima.
O
rio corria lá embaixo. A margem era bordada de um capinzal alagado no baixio.
Ao elevar-se um pouquinho, a beira era tomada por um emaranhado de raízes
grossas e troncos retorcidos. Lá em cima, no plano, se erguia numa ponta de
mata alta que tinha até uma castanheira resistente, solitária, mas vitoriosa. O
caminho para o pequeno rancho era uma mistura de capoeira, pasto e uma mata
rala nascendo. Não havia uma vareda bem definida, cuidada, limpa. Utilizava
aquela área de beira-rio apenas como piseiro para os animais e para raros
momentos de pescaria, portanto, qualquer trajeto, era trajeto, mesmo que se
esgueirando entre os galhos, se abaixando sob troncos, deslizando em declive
cheio de limo. Água boa para as coisas domésticas, apanhava de um poço, ao
pegado da casa, que dava água o ano todo. Na época da seca, o custo era soltar
a corda que o balde ia buscar água limpa e friínha lá embaixo, bem no olhinho
do sol.
Quando
deu pela falta de uma vaca, não disse nada.
O
tempo foi passando. A lua cheia nascendo na planície alagada trazia a beleza
colorida do horizonte para o alpendre. Entes e mundiamentos, trazia também.
A
cada lua, um animal sumia. Até não restar mais nenhum. Ficou sem produção, sem
jeito e dinheiro para conseguir outras leiteiras. Mas não disse nada.
Tinha
uma criação coadjuvante pequena, mas diversa. Galinhas poedeiras, umas quantas
cabras. Patos, picotas, marrecos. Alguns animais silvestres domesticados também
incrementavam o plantel. Veado mateiro, uma preguiça sonolenta, uma penca de
macacos excitados, jabutis, pacas e quatis. Um grupo de cachorros valentes
guardava a criação e a casa.
O
terreiro foi se esvaziando aos poucos.
E
ele nada dizia.
Percebia
uma mudança naquele largo que levava ao rio. Aos poucos, regos varridos,
escavados, iam se formando. Eram bem lisinhos e mostravam certa ordem na
direção. Saíam de vários pontos do capinzal, mas lá no alto convergiam no rumo
único do pequeno rancho.
Quando
não restou mais nenhum animal, nem de cria, nem silvestre, nem de leite, nem de
couro, nem de pena, ele mandou a família para a casa de um tio, na baixada da
Pedreira e mergulhou na solidão. Ficou só. Ele e os cachorros valentes.
Sobre
as perdas, nada falou.
Não
bastou ser valente. Na lua seguinte, nos seis dias de luz e colorido só restou
um cachorro fazendo um arremedo de guarda.
Quando,
no sétimo dia de lua, o último cachorro sumiu, ele refletiu nos dizeres do
povo: “lugar que tem pouco cachorro, desconfie”. Desceu até a margem do rio e
se deteve um pouco ante o capinzal alagado. Ouviu o silêncio da sucuri
digerindo a última presa. Na outra margem o dia amanhecia cinza. Deu a volta
subiu o barranco e, sem dizer nada, sumiu triste e derrotado ali pros lados da
castanheira solitária.
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