Eiras, beiras e fulôs de laranjeiras
Vai longe o dia que arrumei minhas coisinhas
e caí no trecho para viver de vera, o mundo do trabalho. Este um de carteira
assinada, férias, décimo, que arrisca agora, ir pro beleléu.
A poesia, a escrita do coração, a febre
lírica, sutilezas e devaneios, ombrearam-se às eiras, beiras e fulôs de
laranjeiras; O certo é que nem termos, nem lei, vingam quando é chegada a hora
de partir. Eis que as minhas roupas se encaixavam sem resistência dentro da
mala na tarde molhada de uma segunda-feira do mês de fevereiro de 1983.
Lá do passado, retiro a mais clara dedução. O
momento de arrumar a bagagem, olha, não é fácil não. É de inspirar versos dos mais
certeiros, dos mais imbricados.
E trago de lá esta passagem. O cheiro canforinado
das roupas que hoje, não me cabem mais. E, por outro lado, pelo lado indomável
dos bens afetivos, é roupa que cabe arrumadinha na minha memória.
Naquela terça, fiz uma última caminhada pela
Pedreira e Sacramenta. Como era um dia de semana, pouca gente estava em casa.
Quem eu encontrava, era agraciado com palavras doces de despedida. Meu melhor
amigo me acompanhou no estirão. Demos uma volta enorme, a pé, fazendo um
traçado absolutamente emocional.
Quando chegamos em casa, o cansaço era
grande, a fome maior ainda, e a comida pouca. Já havia passado a hora de comer.
Mamãe ajeitou o que tinha e demos de pau numa farofa de ovo e um caldo de
feijão. Foi a engalanada refeição da partida.
Esperamos um pedacinho, após o almoço, para
fazer a digestão, e a seguir, eu me entreguei ao rito.
Minhas coisinhas estavam todas na estante que
mamãe tinha comprado, mas só havia pago uma prestação além da entrada (dali a
alguns dias o caminhão da loja apareceria na frente da vila para levar o móvel
de volta por falta de pagamento).
Além das roupas, fui organizando na mala meus
livros, a cópia do trabalho de conclusão do curso, que descrevia uma viagem de
campo ao ramal das Canas em Ourém e que eu tinha como uma parte forte do meu
raquítico currículo; alguns cartões com motivos católicos que meus amigos do
movimento jovem haviam me presenteado na missa de domingo e meu troféu.
Na época eu era um campeão. Ostentava um
troféu pelo primeiro lugar no concurso de poesia do colégio Souza Franco.
Quando saquei do ponto mais nobre da estante o troféu e intentei lançá-lo num
cantinho da mala, o coração disparou. Eu estava saindo da minha querida Belém,
para uma terra distante; deixando meus amigos, minha mãe, minha poesia, o meu
título de campeão. Não deu outra. Nessa hora, me danei a chorar. Foi um choro
farto, pleno, um extravasamento que denotava toda a minha tristeza com a
necessidade premente da partida. Com a necessidade urgente de trabalho (este um
que agora arrisca desaparecer). Chorei que solucei.
Poderia ter estudado mais, tentando outros
rumos, aprimorado minha escrita, elaborado minha poesia. Mas não! Tô aqui
tomando fôlego, no passado, para garantir a continuidade do trabalho de vera
(este um que conquistei, com carteira assinada, férias, décimo, farofa de ovo, eiras,
beiras e fulôs de laranjeiras).
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