Intelixente!
Quando
morávamos naquela casa de enchimento encravada numa vila geminada fazendo
limite com uma nesga de calçada alta à frente, a vida na Marquês de Herval era
quase de interior. Sem muitas novidades. Que eu me lembre, a Copa de 70 e o
primeiro morador da rua a passar no vestibular foram os acontecimentos que
abalaram a rotina da Marquês. No mais era a bola da rapaziada no leito de
piçarra da rua, as ousadias etílicas da turminha do Bar Pedra Noventa e as
arengas e maledicências comuns entre vizinhos regulando os dias.
A
minha batida era aquela de menino que fazia o Primário na Aparecida e que convivia
em paz com a minha sensaboria, com a minha sensalzice.
Para
a mamãe, eu era um fenômeno. Medindo a minha trajetória de cortadorzinho de
seringa no Xapuri a aluno esforçado na Aparecida, se entusiasmava. Alardeava a
minha alta capacidade. O menino é inteligente, dizia. E com tamanha paixão que
o gê ia ganhando volume, intensidade. Articulava a palavra com tão ferino
enlevo que o gê ia tomando a envergadura de um xis sonoro e prolongado. O
menino é intelixxxxente! Sabe contar toda a novela Irmãos Coragem. Sem tirar
nem pôr.
Mal
sabia a minha vida na Escola. Não era um aluno ruim nem displicente. Mas também
não era esta excelência toda que mamãe pregava baseada na ignorância da minha
vida pregressa e no domínio de uma novela de aventura. Dava minhas mancadas
também.
Uma
emblemática, na Aparecida, que eu não esqueço nunca. Prova de Matemática.
Conjunto. A questão pedia pra ligar os elementos iguais dos conjuntos. Sendo
eles: casinha, bolinha, florzinha. Não sei o que me deu na telha, que
destrambelho ou desmiolamento me acometeu que fui ligando tudo errado. Casinha
com bolinha, bolinha com florzinha, casinha com florzinha. Hoje, uma pessoa de
boa fé, diria que eu interpretei mal o comando. Mas quite, foi patetice mesmo.
O que torna é que, depois da prova, nos ‘comentários finais de Grimoaldo
Soares’ sobre as questões, reunido com a minha patotinha, me dei conta do furo.
E pior, na minha inocência de acreaninho das brenhas (juro, não houve dolo nesta
ação), voltei lá com a fessora, borracha em punho, e pedi a minha prova para as
devidas correções. Pensa num carão que peguei.
Ah,
mamãe, contar as cenas dos próximos capítulos na rodinha de vizinhos era fácil,
agora ligar os desenhinhos dos conjuntos exigia uma concentração que eu não
tinha.
Com
o tempo, mamãe foi desvanecendo a idéia que fazia do meu brilhantismo. Era
chegar o boletim com os meus errezinhos, os meus cinquinhos; Era constatar os
meus aperreios, os meus malabarismos para passar arrastado que ela tomava pé da
mais incontestável realidade. Eu não era um geninho.
Fui
um aluno regular, repeti de ano uma vez por causa de umas paradas, hoje
condenadas pelo ECA, que já contei aqui, mas foi uma única vez. Quando
engrenei, passei sempre direto... regularmente, mas passei. Contudo, se mamãe me
visse hoje, todo prosa contando causos no jornal, ligando desenhinhos da
memória, certamente se entusiasmaria, faria uma rodinha com a vizinhança e
cravaria: intelixxxente!
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